Prof. Túlio Jorge dos Santos (01/09/2008; última modificação em 29/12/2008)
No mês de setembro deste, tivemos um eclipse lunar. Estávamos também assistindo as Olimpíadas realizadas na China.
Os eclipses lunares tiveram seus marcos na história, alguns deles narrados em coluna aqui publicada em 01/02/2008.
As Olimpíadas é herança dos antigos Jogos Pan-Helênicos que ocorriam a cada quatro anos na Grécia antiga, desde 776 a.C. Estes jogos tradicionais foram interrompidos por decreto do imperador romano Teodósio II em 394 a.C. Só foram retomados pelo esforço do Barão francês Pierre Coubertin em 1896 e passaram a ser conhecidos como Olimpíadas da Era Moderna.
Mas, o que têm a ver eclipses e Olimpíadas?
A ligação está na história, mais precisamente na história da astronomia e mais ainda na história do conhecimento humano.
No início do século passado, mergulhadores à procura de esponjas do mar, ao longo da costa da pequena ilha grega de Antikythera (v. mapa abaixo), encontraram restos do naufrágio de uma antiga embarcação romana.
Este naufrágio deve ter ocorrido no intervalo entre os anos de 85-60 a.C. No final da década de 1970, Jaques-Ives Cousteau recuperou dele moedas cunhadas entre os anos de 60-86 a.C. Este registro reforçou a consistência da datação.
Entre os despojos, um em particular chamou a atenção do arqueólogo grego Valério Stais. Era uma peça de 33 cm de comprimento, 17 cm de largura e 9 cm de espessura. Nela, o arqueólogo notou uma engrenagem em forma de volante. Exame mais detalhado revelou que tal peça era feita de bronze e estava assentada numa base de madeira. A busca mais elaborada revelou que aquela era apenas uma das três partes maiores que juntas a muitos pequenos fragmentos formavam um instrumento, que à primeira vista sugeria ligação com observações astronômicas. Além do mais, foi recuperado um texto de cerca de três mil caracteres, que mais tarde ao ser parcialmente decifrado, mostrou na verdade se tratar de um manual de operações que descrevia como calibrar e ajustar para fazer observações do Sol, da Lua, do movimento dos planetas (Vênus e Mercúrio). A figura abaixo à esquerda é a imagem da peça maior encontrada. A imagem ao lado é do “Manual”.
Foi assim que os pesquisadores se viram diante do instrumento científico mais antigo e mais complexo até então conhecido.
Mas, foi somente em 1974 que o pesquisador britânico Derek de Solla Price publicou o artigo “Engrenagens dos Gregos: O Mecanismo de Antikythera - um computador calendário (sic) de 80 a.C.” [i] Nele, Price apresentou um modelo do instrumento. As ilustrações abaixo mostram à esquerda a face frontal, e à direita a face oposta.
No mesmo artigo, o autor apresentou um diagrama para o plano geral de engrenagens do mecanismo.
O mecanismo é composto de três mostradores, um na face frontal e dois na face oposta.
O mostrador frontal tem duas escalas concêntricas. A externa marca o calendário egípcio de 365 dias, o interno marca as constelações do Zodíaco e está dividida em graus. O mostrador do calendário pode ser ajustado para compensar o quarto de dia excedente em cada ano (vide artigo publicado nesta coluna em 11/01/2008). Foram identificados três ponteiros um para indicar a data e os outros para as posições do Sol e da Lua, incluindo um segundo mecanismo para indicar fases da Lua. Possui ainda o que seria o precursor do moderno almanaque de efemérides que aponta o nascer e o ocaso de estrelas específicas.
O “dial” superior do fundo do instrumento está na forma espiral com 47 divisões por volta, representando os 235 meses dos 19 anos do “Ciclo Metônico”. Ao lado, um “dial” subsidiário para fixar nos 76 anos do “Ciclo Calípico” (existem 4 ciclos Metônicos em um Calípico). Estes ciclos em conjunto são usados para fixar calendários.
No “dial” inferior, também na forma espiral, estão as 223 divisões que compõem o “Ciclo de Saros”. Este ciclo, descoberto pelos caldeus, indica o intervalo de 18 anos, 11 dias e 8 horas, que é o intervalo de tempo transcorrido entre ocorrências de um eclipse particular. A figura abaixo é um modelo destas duas faces do instrumento.
Adaptado de Patt Clarck - Nature
O tratamento de imagens das amostras por modernas técnicas de raios x e raios gama revelou com mais detalhes o interior do instrumento. Ele teria no mínimo 30 engrenagens, algumas com até 225 dentes, todas talhadas a mão. Abaixo estão radiografias computadorizadas de dois dos maiores fragmentos do achado.
As mais recentes descobertas informam acerca de sua origem, de características finas de seu mecanismo de previsão de eclipses e de seu mostrador de calendário para os jogos olímpicos.
A revelação de inscrições de nomes de meses usados nas colônias de Corinto indicou que sua origem pode estar além da ilha de Rodes, um importante centro de desenvolvimento científico e tecnológico na época, e onde se acreditava tenha sido construído o mecanismo. Este mais além aponta na direção de Siracusa, na Sicília. Esta cidade estado era aliada de Corinto e onde viveu e morreu Arquimedes. Aquele mesmo do “Heureca!”. Embora Arquimedes tenha falecido muito antes (212 a.C.), este instrumento pode ser um descendente de um invento similar atribuído a ele e relatado pelo filósofo romano Cícero em 54 a.C.
A análise de resultados de varredura de raios x de alta resolução, capaz de ler sinais de até quase dois milímetros de extensão, destacou as cinco escalas em espiral com as respectivas marcas para previsão de eclipses. A figura abaixo à esquerda mostra um diagrama das escalas em superposição à foto de fragmentos do mecanismo. A figura à direita é uma reconstrução deste mostrador, gerada em computador. Nela podemos ver o pequeno mostrador secundário que indica o ciclo de quatro anos para os jogos olímpicos. Estas descobertas estão publicadas na revista Nature[ii] .
Os restos deste instrumento estão sendo estudados pelo Projeto de Pesquisa do Mecanismo de Antikythera (em inglês, Antikythera Mechanism Research Project), um consórcio entre a Universidade de Cardiff da Inglaterra, a Universidade Nacional de Atenas, a Universidade Aristóteles da Tessalonica, o Museu Arqueológico Nacional de Atenas, a X-Tech System da Inglaterra e a Hewlett-Packard dos Estados Unidos.
Devido à fragilidade das peças, elas não puderam ser removidas do museu e a HP e X-Tech deslocaram para Atenas seus equipamentos. A HP desenvolveu uma cúpula com uma superfície para imagens em três dimensões e a X-Tech instalou uma câmera de imagens computadorizada, desenhada especialmente para estudos do mecanismo.
Em 21 de outubro de 2005 foi anunciada a descoberta de novas peças. Hoje existem oitenta e dois fragmentos catalogados.
Tudo indica que o Mecanismo de Antikythera estava cerca de mil anos à frente de qualquer instrumento similar descoberto. O registro histórico indica que no início do século XI o astrônomo árabe Al Biruni construiu instrumentos astronômicos complexos.
Em todos os casos, ainda há muito a descobrir sobre este intrigante mecanismo.
[i] Transact. Am. Phil. Soc. 64, 7, 70 (1974)
[ii] Nature 454, 614-617 (31 julho de 2008)