Mauro Lúcio Leitão Condé
Prof. de História e Filosofia da Ciência/FAFICH/UFMG
Resumo: A palestra aborda as relações entre técnica (technica) e ciência (scientia) na época dos descobrimentos procurando mostrar que o grande impulso às navegações vieram das novas tecnologias da época tendo a "ciência", ou pelo menos o que se entendia por ciência nesse período, um papel secundário. Entretanto, a partir daí, as ciências (sobretudo a Física e a Astronomia) encontrarão as bases para nascer e começarão a confluir com a técnica, ainda que vindas de tradições diferentes. Por fim, concluir que tanto técnica quanto ciência podem ser vistas, enquanto produtos culturais, como uma extensão do homem moderno.
1- Na sociedade contemporânea estamos habituados com a estreita relação existente entre a ciência e a tecnologia a ponto de muitas vezes não sabermos o que, nesse complexo, é propriamente ciência, ciência aplicada ou tecnologia. Contudo, essa relação nem sempre foi tão próxima assim. Até o renascimento, ciência e técnica eram práticas culturais totalmente distintas, isto é, vinham de tradições diferentes e os seus praticantes nem sempre tinham a mesma visão de mundo, os mesmos interesses, posições sociais, etc. Contudo, a incipiente relação renascentista entre a técnica e a ciência, ou pelo menos, com o que tradição ocidental naquele momento entendia como ciência, acabará por marcar de forma indelével, já na modernidade, a complexa e imbricada relação entre técnica e ciência.
O objetivo dessa palestra é mostrar alguns aspectos dessa relação entre técnica e ciência. Em particular, ressaltando a importância do renascimento para acabar com a antiga separação existente entre técnica e ciência no mundo clássico. Por traz da discussão sobre as tecnologias de navegação e o surgimento da astronomia enquanto ciência existe, assim, uma outra mais abrangente, isto é, a das relações entre ciência e técnica. Pretendo discutir essas relações tendo como pano de fundo as tecnologias de navegação e a construção da ciência astronômica.
Astronomia e Física foram as primeiras ciências modernas. As grandes conquistas proporcionadas pelas novas tecnologias de navegação na última fase do renascimento e começo da modernidade foram determinantes na própria aceitação desse modelo de ciência, embora essa não tenha sido uma concepção privilegiada pela historiografia tradicional.
Essas novas tecnologias não apenas irão contradizer a idéia clássica de ciência, mas sobretudo a visão de mundo estabelecida a partir dessa concepção "científica" clássica. Se, por um lado, a emergente ciência moderna sofreu grandes pressões ao se contrapor a essa visão clássica de mundo, por outro lado, as novas tecnologias, no mesmo período, eram vistas como algo que "possibilitava o progresso". Portanto, muito mais aceitas do que as idéias científicas. Na medida em que essas transformações tecnológicas estabeleciam uma mudança cultural acabaram por possibilitar uma aceitação relativamente mais fácil das novas idéias científicas.
Assim, no renascimento, época de grandes e profundas transformações, essas duas tradições começarão a estabelecer um diálogo que se estreitará cada vez mais até se efetivar completamente na modernidade. Com efeito, a modernidade, enquanto época da consolidação dessa relação, será totalmente diferente das demais, onde a partir de sua produção tecnológica e de sua racionalidade científica o homem não apenas amplia os horizontes do seu mundo, mas inventa a si próprio, constituindo-se, desse modo, na interpretação de Michel Foucault, uma "invenção recente". Em outras palavras, o homem moderno coloca a si mesmo, nesse novo contexto, como objeto de seu saber.
"Uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano. Tomando uma cronologia relativamente curta e um recorte geográfico restrito - a cultura européia desde o século XVI - pode-se estar seguro de que o homem é aí uma invenção recente”.
O homem é uma invenção recente não apenas quando se coloca como objeto de seu próprio saber, mas também porque esse novo contexto histórico modificará de modo particular a própria idéia de homem. A tecnologia e a ciência têm um papel central nessa "invenção" do homem moderno.
2- Sob diversos aspectos, a ciência moderna, por um lado, é herdeira da concepção clássica de "ciência", isto é, da Episteme grega, ainda que, por outro lado, se constitua a partir da crítica a esse modelo clássico de "ciência". Para os gregos, particularmente Platão, a idéia de Episteme, enquanto um saber aprofundado da complexa estrutura do real, se opõe à Doxa, ou o saber imediato sem acuidade necessária para compreendermos a "verdadeira" realidade. Ainda segundo Platão, a Episteme transcende o mundo das aparências (Simulacro), dos sentidos ou da experiência. Com essa concepção, Platão estará distanciando o conhecimento "científico" da vida mundana, dos dados do sentido, da praxis e da técnica.
Esse aspecto abstrato da "ciência" clássica aparece nos gregos de um modo geral. Em Platão, na medida em que não encontramos no mundo da experiência a "verdade" ( que está na transcendência do mundo das idéias) não há necessidade de formulação de uma "ciência da Physis", isto é, de uma Física. Aristóteles, discordando de Platão, elabora uma Física. Entretanto, por razões diferentes das de seu antigo mestre, Platão - entre outras, por exemplo, a não aceitação da lógica indutiva como uma lógica científica - elabora uma física distanciada do mundo da experiência e da técnica, isto é, especulativa e abstrata. Onde o "senso comum" prevalece.
Dessa forma, essa concepção grega de ciência tem algumas implicações importantes para a ciência moderna, sejam elas positivas ou negativas. Talvez, como principais pontos positivos devemos destacar a idéia grega de que existe uma ordem no mundo, ainda que essa não se encontre no mundo da experiência. Mais que isso, que essa ordem que teria um carretar universal, podia ser apreendida pelo homem. Como implicação negativa, podemos ressaltar que esse mesmo caráter abstrato dessa concepção de conhecimento presente entre os gregos fará da concepção clássica de ciência um saber especulativo distanciado da técnica, entendida, contrariamente, como um saber prático aplicado à vida mundana. É importante destacar que, na medida em que essa concepção clássica de "ciência" não está diretamente ligada ao modelo de produção econômica ela pode se manter nesse distanciamento dos aspectos empíricos, práticos e técnicos. O que não ocorrerá com a ciência moderna.
Entretanto, como dito, na renascença essas duas tradições diferentes começam a se encontrar. Por um lado, a tradição do homem letrado, portador de uma ciência teórica, abstrata (Episteme). Por outro lado, a tradição do artesão, do homem da técnica que faz do mundo material à sua volta o seu livro de aprender, e do fazer experimental a sua profissão. Essa tradição de homens ligados à técnica cresce enormente a partir do século XIV. Gradativamente, esses homens da técnica, mais do que produzir tecnologia, passam também a ser críticos dessa tradição filosófica livresca, procurando mostrar que o livro da natureza é muito mais rico que as especulações filosóficas. Essa metáfora, mais tarde já incorporada pela ciência, aparecerá em Galileu Galilei e é muitas vezes lembrada pelos historiadores da ciência. "A filosofia encontra-se escrita nesse grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo).
Essa geração de homens ligados à técnica foi responsável por muitas transformações. Várias foram as inovações tecnológicas surgidas sobretudo a partir do século XIV. Estas novas tecnologias acabaram por reformular o modelo de sociedade existente criando muitas vezes, a cada nova tecnologia, a necessidade de uma outra tecnologia, marcando, assim, definitivamente a sociedade moderna como uma sociedade tecnológica. Por exemplo, contra os novos canhões potentes era necessário fazer fortificações mais potentes, portanto, desenvolver a engenharia de construção, etc.
Essa produção sucessiva de novas tecnologias, ao longo do tempo, não apenas produzirá mudanças imediatas, mas, sobretudo, imprimirá, como uma das características básicas da cultura moderna, a constante necessidade de se renovar, de ser "original", de superar o que já tinha sido colocado, conhecido. Trata-se de "inventar o novo", no sentido mais amplo possível que essa expressão possa ter.
Dessa forma, o renascimento começou a engendrar técnicas que produziram mais que transformações econômicas e políticas visíveis de forma imediata, mas inovações tecnológicas que acabaram por transformar a própria concepção que o homem construíra de si mesmo. A partir de então, o homem, em um processo gradual, só se compreenderá enquanto homem a partir das tecnologias criadas por ele mesmo. O que denomino de Homo Technologicus.
Algumas invenções, entre muitas, são significativas para compreendermos como essas novas tecnologias renascentistas irão contribuir de modo decisivo na constituição desse Homo Technologicus, como por exemplo, o relógio e a imprensa e as tecnologias de navegação. Ao introduzir a precisão na medida do tempo através dos relógios, inicialmente grandes mecanismos nas praças das cidades e depois peças da mobília das casas e, em 1500, relógio de bolso, o homem passará a ter uma nova relação com o tempo. O tempo que passa depressa no cotidiano atribulado, o tempo perdido, o tempo que é dinheiro, etc. A partir de então, o homem será cada vez mais premido pelo tempo, seja ele o tempo físico ou psicológico. O tempo artificial vai tomando o lugar do tempo natural. O que marcará os eventos não mais será o pôr ou o nascer do sol (tempo natural), mas os relógios (tempo artificial). Aos poucos essa relação com o artificial vai se tornando cada vez mais presente e mais complexa.
A imprensa ou prensa de tipos (letras) móveis criada por Johann Gutemberg (1400-1468) entre 1445/48 trará a possibilidade de estender a cultura a uma parcela da população cada vez maior e em uma progressão geométrica. Sob certos aspectos, a revolução digital que vivemos hoje, por exemplo, com a Internet, é um tipo de continuação da revolução mediática iniciada por Gutenberg.
No que diz respeito aos usos das novas tecnologias de navegação e as descobertas que elas possibilitaram, esse processo introduzirá transformações radicais na visão que o homem tinha do mundo e conseqüentemente dele mesmo. Descobrir novas terras e seus habitantes com costumes totalmente diferentes, mostrando a possibilidade do homem se organizar socialmente de um modo desconhecido para o homem europeu irá contribuir para o "descentramento" do homem.
Desde a Antigüidade o mar mediterrâneo foi um velho conhecido dos europeus. No entanto, enfrentar o atlântico era algo que assustava os mais experientes navegadores. Esse medo do atlântico desaparecerá a partir da criação ou aperfeiçoamento de tecnologias que permitirão superar importantes problemas: 1- como ir e voltar a alto mar com segurança; 2- como se orientar e se localizar com precisão nessa empreitada, etc.
A caravela será essa embarcação revolucionária que permitirá "navegar por mares nunca dantes navegados". Essa embarcação com suas velas triangulares - as embarcações tradicionais usavam velas quadradas - permitirá o avanço em zig-zag na direção desejada, mesmo com ventos contrários. Com a caravela os portugueses poderão chegar cada vez mais longe nas grandes aventuras dos descobrimentos. A bússola, que já era conhecida há muito tempo, permitia a localização. Somada ainda a instrumentos de localização como o quadrante e o astrolábio o problema da orientação em alto mar será resolvido.
Por volta de 1460, os portugueses começaram a usar o quadrante, instrumento que permitia estabelecer a distância - no sentido norte sul - entre o ponto de partida e o ponto onde se encontrava a caravela, tendo como referência a estrela polar. O astrolábio também permitia determinar essa distância, contudo, sua referência era o sol, o que possibilitará navegar abaixo da linha do equador onde a estrela polar não era vista, expandindo, assim, explorações.
Por volta de 1500, quando o Brasil foi descoberto, um grande número de inovações tecnológicas já tinham sido feitas. Muitas delas, de forma mais ou menos determinante, já tinham participado nesse movimento de transformação da concepção que o homem tinha do mundo e dele mesmo. Contudo, se do ponto de vista da técnica o renascimento avançava, do ponto de vista da ciência, o modelo que prevalecia nas universidades, criadas desde o século XII, ainda era totalmente retrógrado. Ensinava-se, na maioria das vezes, as obras de Aristóteles. Dentre elas, em especial, a concepção de mundo aristotélica presente em sua obra a Física. Dessa concepção, particularmente, a idéia de que a terra era o centro do sistema. Idéia essa que desde a antigüidade tinha sido, em termos astronômicos, defendida e divulgada por Cláudio Ptolomeu através de seu livro O Almagesto. As cartas astronômicas para a navegação disponíveis no momento das grandes navegações eram baseadas no livro de Ptolomeu. Com efeito, embora as tecnologias de navegação possibilitassem, com grande eficácia para a época, a expansão européia ultramarinha, a ciência subjacente não apenas era abstrata e distante das técnicas empregadas, mas, na maioria das vezes, equivocada.
Entretanto, na leitura de importantes historiadores da ciência, no ano de 1543, ao ser publicado o livro Das Revoluções das Órbitas Celestes de Copérnico, surge a ciência moderna. Nessa obra , Copérnico sustenta que o sol, e não a terra, é o centro do sistema. Ainda que hoje saibamos que Copérnico tinha razões místicas e religiosas para sustentar isso, sua tentativa é acompanha por cálculos matemáticos. E ainda que as órbitas não sejam circulares, mas elípticas, como demonstrará mais tarde Kepler, Copérnico conseguirá introduzir um "corte epistemológico" e desencadear uma revolução científica da qual participará figuras que o sucedem como Kepler, Galileu, Newton, etc.
Em outras palavras, embora sob diversos aspectos Copérnico pudesse estar errado, naquilo que ele estava certo impulsionou a ciência. Temos, assim, com a chamada "revolução copernicana", pelo menos, dois pontos significativos: 1- Esse processo acabará por estimular a consolidação da relação entre a ciência e técnica; 2- e a ciência irá contribuir definitivamente para a transformação antropológica iniciada pela técnica.
Primeiramente, as tecnologias de navegação desempenharam um grande papel na construção da idéia de ciência astronômica na medida em que tais tecnologias, com tudo que possibilitavam, acabavam por demonstrar, ainda que de modo indireto, que as teorias científicas de alcance universal poderiam não ser apenas uma especulação abstrata, mas se encaixavam com a técnica e a experiência, inclusive, prevendo-as. Embora esse tenha sido um processo muito complexo em que muitas vezes o sistema ptolomáico também funcionava, mostrando que as novas idéias científicas não pareciam ser necessárias. Em segundo lugar, essa relação que se estabelece entre ciência e técnica permite também assumir como verdadeiras as conseqüências das afirmações científicas, inclusive aquelas que serviram de base para a construção da visão de mundo clássica. Em outras palavras, se Copérnico está certo, então a terra é um simples "planeta" (astro errante) perdido na imensidão do infinito, como afirmará Giordano Bruno. O homem está descentrado do universo. Esse descentramento não é apenas uma especulação filosófica da "nova ciência astronômica, mas é constatado pelas novas descobertas, pela ampliação dos horizontes do homem renascentista possibilitadas, entre outras coisas, pelas novas tecnologias de navegação que conduzirá o homem europeu, como dito, a conhecer novos costumes, novas possibilidades de organização social, etc.
Por fim, o homem está pronto para nascer enquanto homem moderno. Um homem que não mais está no centro do universo, mas será ele próprio o centro do universo. Isto é o que caracteriza o antropocentrismo. Contudo, esse novo homem que é o centro do universo terá que construir a si próprio. E, assim, a técnica e a tecnologia será a sua extensão. Talvez, Galileu com a sua luneta seja a síntese desse novo homem que nos abre a modernidade.
"A época moderna começou quando o homem, com o auxílio do telescópio, voltou seus olhos corpóreos rumo ao universo, acerca do qual especulara durante longo tempo - vendo com os olhos do espírito, ouvindo com os ouvidos do coração e guiado pela luz interior da razão - e aprendeu que seus sentidos não eram adequados para o universo, que sua experiência quotidiana, longe de ser capaz de construir o modelo para a recepção da verdade e a aquisição do conhecimento, era uma constante fonte de erro e ilusão".
Assim, Galileu estabelece definitivamente, no inicio da modernidade, a junção da tradição da técnica e da ciência. Com suas teorias, afirma o caráter universal da ciência e abraça a técnica e a experiência como recursos para a demonstração dessa ciência. Ao fazer de suas teorias e de sua luneta uma extensão de si mesmo, como uma prótese dos seus olhos, o que vê alterará de forma definitiva o destino da humanidade. Então, essa mesma humanidade só se compreenderá cada vez mais a partir de sua extensão, isto é, a partir de suas idéias científicas e de suas produções tecnológicas. Com isso, quanto mais o homem conhece a si mesmo através de seus mecanismos artificiais, mais se distancia de si mesmo, enquanto um homem natural.
Esse é o dilema humano. Na sua tentativa de compreender a si próprio e o mundo para dominá-lo, o homem cria tecnologias e teorias científicas. Contudo, ao usar essa extensão de seus olhos para ver o mundo e a si próprio, ele já se percebe de uma forma totalmente diferente da qual se via antes. Mais que isso, quando agora ele pergunta: o que é o homem? Apenas poderá responder a essa questão a partir dessa sua nova compreensão de si mesmo, isto é, a partir desse homem construído na artificialidade de suas extensões científica e tecnológica.
Enquanto um ser de artifício, quanto mais o homem compreende o mundo, mais inventa o mundo; quanto mais se compreende, mais se inventa através de suas construções - teóricas e tecnológicas -, e mais compreende a si mesmo, distanciando de si próprio enquanto um ser de natureza e compreendendo a si mesmo enquanto um ser de artifício. Eis o paradoxo. Para o homem conhecer o mundo e conhecer a si mesmo é preciso distanciar-se do mundo e de si mesmo.
Com efeito, a ciência tanto quanto a técnica são produtos do homem e possuem o mesmo estatuto cultural. Se, por um lado, historicamente faz sentido mapear essas tradições como distintas, por outro lado, de um ponto de vista epistemológico, não faz sentido separá-las. Não apenas porque ambas são construções do homem, mas porque é a partir delas que o homem compreende o mundo e a si mesmo.
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