Prof. Renato Las Casas (31/05/2004)
Dia 8 próximo acontecerá um "trânsito de Vênus". Será como que um "mini eclipse" do Sol. Veremos Vênus passar na frente do disco solar. Esse é um evento raro, até hoje observado apenas cinco vezes pela humanidade. Trânsitos de Vênus sempre aconteceram, mas não temos notícias de alguém que tenha observado algum por acaso, embora isso fosse possível (os raios solares, passando por um furo em uma janela, podem reproduzir a imagem do Sol no chão do quarto escuro, por exemplo). Passamos a observar trânsitos de Vênus (e de Mercúrio) a partir do século XVII, após Johannes Kepler haver conseguido entender e equacionar as leis que regem os movimentos dos planetas. Os trânsitos planetários tornaram-se assim previsíveis.Em 1627 Kepler previu um próximo trânsito de Mercúrio para 07 de novembro de 1631 e de Vênus para 07 de dezembro, também de 1631. (A observação desses fenômenos serviria, inclusive, para "provar" as suas teorias.) Kepler faleceu em 1630.
O trânsito de Mercúrio foi observado pelo menos por quatro pesquisadores (em Paris, Alsácia, Tirol e Bavária). O trânsito de Vênus não foi observado, pois ocorreu algumas horas antes do previsto, na madrugada européia do dia 6 para o dia 7. Hoje sabemos que apenas o final desse trânsito poderia ter sido observado da Europa Central.
Segundo Kepler os trânsitos de Vênus ocorreriam em intervalos de aproximadamente 120 anos. Também segundo Kepler, em dezembro de 1639, Vênus deveria passar por detrás do Sol.
Em outubro daquele ano, menos de sessenta dias antes do fenômeno, Jeremiah Horrocks, astrônomo e matemático inglês, descobriu que Vênus passaria de fato na frente do Sol, e não atrás, como previu Kepler. Deveria haver um trânsito de Vênus no dia 04 de dezembro daquele mesmo ano. Horrocks, a partir de sua vila próxima a Preston e seu amigo William Cabtree, a partir de Manchester (ambos na Inglaterra), foram os primeiros a observar um trânsito de Vênus.
Cabtree haveria ficado tão emocionado com o fenômeno que se esqueceu de fazer qualquer anotação. Horrocks projetou a imagem do Sol em uma folha de papel quadriculado, o que lhe ajudou em suas anotações.
Horrocks morreu subitamente em 1641. O seu trabalho só foi publicado em 1662, juntamente às observações do trânsito de Mercúrio de 1661 feitas pelo astrônomo Johannes Hevelius.
Vênus é mais rápido que a Terra em seu movimento orbital. Ele gasta apenas 0,62 ano terrestre (243 dias) para dar uma volta completa em torno do Sol. De 19 em 19 meses Vênus "ultrapassa" nosso planeta, ocorrendo um "quase alinhamento" Sol-Vênus-Terra. Esse alinhamento seria perfeito (teríamos então um trânsito de Vênus a cada 19 meses) se os planos das órbitas de Vênus e da Terra fossem coincidentes.
O plano da órbita de Vênus é inclinado de 3,4o em relação ao plano da órbita da Terra. É um ângulo pequeno, porém suficiente para não termos um alinhamento Sol-Vênus-Terra (e consequênte trânsito de Vênus) a cada uma dessas "ultrapassagens".
Só teremos trânsito quando Vênus "ultrapassar" a Terra justamente sobre a reta intersecção desses dois planos. (Nosso planeta cruza essa reta no início do mês de junho e, seis meses depois, no início de dezembro.)
Se o Sol tivesse aproximadamente metade de seu diâmetro, teríamos apenas um trânsito de Vênus a cada 121,5 anos. Devido à grande extensão angular do Sol, temos um outro trânsito de Vênus oito anos antes dos 121,5 anos inicialmente "previstos por Kepler" (quando o trânsito acontecer na região da órbita da Terra correspondente ao mês de dezembro) ou oito anos depois (quando o trânsito acontecer na região correspondente ao mês de junho).
Kepler havia achado uma relação entre os períodos dos planetas e os raios médios de suas órbitas (R³/T²=constante). Os períodos (facilmente medidos) já eram conhecidos. Bastava então obtermos a distância de um único planeta ao Sol (da Terra, por exemplo), que teríamos as distâncias de todos os planetas ao Sol. Esse era um dos principais problemas da ciência da época: Obter a escala de distâncias para o Sistema Solar.
Em 1676-77, Edmond Halley passou mais de 12 meses na ilha de Santa Helena (Atlântico Sul) observando estrelas de nosso hemisfério, não visíveis a partir do hemisfério norte. A partir dessa ilha ele observou o trânsito de Mercúrio de 1677, o que lhe inspirou a "bolar" um método para a determinação da distância Terra - Sol com dados obtidos durante um trânsito planetário.
Após trabalhar nesse problema por quase quarenta anos, finalmente em 1716, Halley, já um astrônomo famoso e respeitado, publicou os detalhes finais para a obtenção da distância Terra - Sol com dados a serem obtidos em um trânsito de Vênus.
Halley obteve um meio de determinar a "paralaxe solar" a partir da diferença nos tempos de um mesmo trânsito de Vênus medidos por observadores situados em latitudes diferentes. (Trânsitos de Mercúrio não serviriam. Por Mercúrio estar muito próximo do Sol, as diferenças de tempo medidas por observadores em latitudes diferentes seriam muito pequenas, acarretando em erros muito grandes.)
O próximo trânsito de Vênus só ocorreria em 1761, mas foram nele depositadas as esperanças de se determinar a escala de distâncias para o Sistema Solar.
Em 1725 o astrônomo francês Joseph-Nicolas Delisle apresentou um novo método para a determinação da distância Terra - Sol, também a partir de observações do trânsito de Vênus. Pelo método de Delisle a paralaxe solar poderia ser obtida a partir de dados da entrada e/ou saída de Vênus sobre o disco solar.
O método de Delisle tinha a vantagem sobre o método de Halley de não ser preciso observar todo o trânsito para se chegar ao esperado. Bastava observarmos o início ou o final do trânsito. Assim sendo, problemas meterológicos (céu fechado) tinham menor dimensão, além do fato de se extender a região de observação por uma maior área de nosso planeta (mesmo a partir de regiões onde o Sol já nascesse com Vênus em trânsito, ou de regiões onde o Sol se pusesse antes de terminar o trânsito, seria possível obtermos dados para a determinação da paralaxe solar).
A grande desvantagem desse método, entretando, era o fato de necessitarmos de um conhecimento preciso da longitude do local da observação, o que era muito difícil no século XVIII.
O desenvolvimento de equipamentos e sistemas para medição do tempo (relógios) era um outro grande problema nesse século. Esse problema trazia limitações ao método de Delisle diretamente nas medições (precisávamos de relógios precisos para determinarmos o momento da entrada e/ou da saída de Vênus sobre o disco solar) assim como no estabelecimento das longitudes dos sítios de observação.
Várias expedições científicas foram organizadas para observar o trânsito de 1761 dos "mais longínquos pontos do planeta". Em uma época em que as viagens eram caras e demoradas, foram necessários altos investimentos. Pela primeira vez a comunidade científica mundial se organizou com um mesmo propósito.
A França e a Inglaterra fizeram os maiores investimentos. A França enviou expedições à Ilha de Rodriguez (norte de Madagascar), Sibéria e Viena; enquanto que a Inglaterra enviou seus astrônomos para a Ilha de Santa Helena e Sumatra.
Os resultados foram desapontadores. Os valores para a paralaxe solar, obtidos por diferentes pesquisadores variaram de 8,5" a 10,5". A principal fonte de erro, além da já prevista imprecisão nas longitudes dos locais de observação, foi um inesperado efeito de difração ao qual foi dado o nome de "Gota Negra". No entrar e no sair de Vênus sobre o disco solar, aparece um "borrão" entre Vênus e a borda do disco solar. Com isso perdemos a precisão dos instantes de entrada e de saída.
Inesperada também foi a presença de um halo difuso em torno de Vênus, observado por vários pesquisadores. Vênus teria atmosfera?!
A visibilidade total do trânsito de 1769 aconteceria em regiões "ainda mais longínquas" do planeta. Foram realizadas 77 expedições que efetuaram medições a partir de sítios espalhados pela América Central, América do Norte, Oceano Pacífico e Ásia. Apenas quatro dessas expedições foram para regiões de visibilidade total (Finlândia, Bahia de Hudson, California e Tahiti).
Uma única expedição observou a partir do hemisfério sul. Foi uma expedição inglesa comandada pelo então tenente James Cook. Essa expedição teve também a missão de "explorar os mares do sul". As observações se deram no Tahiti (ilha que havia sido descoberta dois anos antes) e foram realizadas pelo astrônomo Charles Green e pelo próprio James Cook.
Os avanços da ciência nos oito anos anteriores e, principalmente, a experiência do trânsito passado, diminuiram sensívelmente as discrepâncias entre os valores da paralaxe solar obtidos.
PARALAXE SOLAR OBTIDA COM BASE NAS OBSERVAÇÕES DO TRÂNSITO DE 1769 | ||
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Ano de Publicação | Autor | Paralaxe Solar |
1770 | William Smith | 8.6045" |
1770 | Thomas Hornsby | 8.78" |
1770 | Pingré e Lalande | 9.2" e 8.88" |
1771 | Lalande | entre 8.55" e 8.63"" |
1771 | Lexell | 8.68" |
1772 | Lexell | 8.63" |
1772 | Planmann | 8.43" |
1772 | Pingré | 8.80" |
1773/1774 | Hell | 8.70" |
O progresso tecnológico obtido pela humanidade em um século foi significativo nas observações do trânsito de 1874. Medidas de tempo já haviam se tornado problemas menores e longitudes eram conhecidas com certa facilidade, mas o grande avanço nessas observações foi possibilitado pela invenção da fotografia.
A região de visibilidade total compreendia a Oceania e Asia oriental. A região de visibilidade parcial compreendia por um lado o Oceano Pacífico e por outro o restante da Ásia, África e Europa Oriental.
As principais expedições continuaram sendo organizadas pela França e Inglaterra, mas cresceram significativamente contribuições de outros países.
A França organizou três expedições para o hemisfério norte e três para o hemisfério sul. Os cientistas franceses desenvolveram especialmente para essas observações uma espécie de "revolver fotográfico", que podia fazer 48 exposições seguidas do trânsito em um "daguerreótipo circular".
No trânsito de 1882 a região de visibilidade total compreendia toda a América do Sul; toda a América Central e o leste da América do Norte. Além da França e da Inglaterra, aumentaram ainda mais as contribuições de outros países, dentre eles dos Estados Unidos, com oito missões organizadas pelo Observatório Naval de Washington. As missões norte americanas obtiveram aproximadamente 1400 fotos aproveitáveis do fenômeno.
O Brasil participou com três missões organizadas pelo Observatório Nacional. A primeira, sob a coordenação de J. d'O. Lacaille, ficou em território nacional e observou a partir de Olinda; a segunda, sob o comando do Barão de Teffé foi para a ilha de São Tomaz (Antilhas); e a terceira, tendo à frente Luis Cruls, diretor do Observatório Nacional e coordenador das missões, observou a partir de Punta Arenas (Chile).
Apesar das medidas brasileiras aproveitáveis haverem sido apenas correspondentes aos instantes em que Vênus completou a sua entrada no disco solar (segundo contacto: medida aproveitável apenas de Punta Arenas) e começou a sair do disco solar (terceiro contacto: medidas aproveitáveis realizadas pelas três expedições), o valor da paralaxe solar obtido foi muito próximo do valor atualmente aceito: 8,808".
A PARALAXE SOLAR AO LONGO DA HISTÓRIA | -VALORES MAIS ACEITOS- | |
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Ano | Método, Autor | Paralaxe |
1772 | Trânsitos de 1761 e 1769, Pingré | 8.80" |
1824 | Trânsitos de 1761 e 1769, Encke | 8.5776" |
1835 | Trânsitos de 1761 e 1769 | 8.571 +/- 0.037" |
1862 | Paralaxe de Marte, Hall | 8.841" |
1875 | Paralaxe do asteróide Flora, Galle | 8.873" |
1881 | Paralaxe de Marte, Gill | 8.78" |
1890 | Trânsitos de 1874 e 1882, Newcomb | 8.79" |
1900 | Paralaxe do asteróide Eros, Hinks | 8.806" |
1941 | Paralaxe do asteróide Eros | 8.790" |
1990 | Radar, NASA | 8.79415" |
O mapa acima apresenta as regiões de visibilidade do trânsito de 8 de junho de 2004. A região de nosso planeta que verá todo o trânsito corresponde à calota polar norte; Europa; práticamente toda a Ásia e grande parte da África. O Sol vai se por na Oceania antes do trânsito haver acabado. No Brasil o Sol nascerá com o trânsito já acontecendo.
Em Minas Gerais o Sol nascerá aproximadamente às 6:30h, quando o trânsito já houver passado da metade . Veremos Vênus sobre o disco solar até às 8:13h (terceiro contacto). A saída terá se completado às 8:32h (quarto contacto).
Você não precisa ter um telescópio para observar esse fenômeno. Existem certos métodos baratos, eficientes e seguros para essa observação. Antes de mais nada, saiba que observar o Sol é muito perigoso! Sem saber, você pode danificar as suas vistas e ir ficando gradativamente cego em alguns anos.
Nunca observe o Sol sem ter certeza que o método utilizado é realmente seguro.
Os métodos seguros para a observação desse fenômeno são os mesmos para a observação de um eclipse solar (como para qualquer observação do Sol).
Veja em nosso Assunto Passado "O Eclipse de 21 de Junho" a descrição desses métodos.