A Real Importância de Sobral na Ciência Moderna

Prof. Domingos S.L.Soares (26 de setembro de 2005)

RESUMO

A Reunião Anual da SBPC deste ano foi realizada no mês de julho, no Ceará, e a cidade de Sobral foi bastante contemplada, com a realização de vários eventos. O motivo de toda esta atenção, obviamente, é a expedição astronômica Britânica de 1919, que, no dia 29 de maio daquele ano, registrou em vários experimentos o eclipse solar. O objetivo era a confrontação observacional com as previsões da Teoria da Relatividade Geral, referentes à deflexão da luz pela influência gravitacional do Sol. Em vários artigos publicados na imprensa repetiu-se que ``... a célebre experiência durante o eclipse solar de 1919 comprovou a Teoria da Relatividade Geral". Sabe-se hoje que esta afirmação não é verdadeira. As condições técnicas e instrumentais da ocasião não permitiam esta conclusão. Apresento aqui alguns argumentos técnicos colhidos na literatura e que apontam para esta avaliação das observações de Sobral. É claro que esta visão alternativa dos experimentos de Sobral não diminui, de forma alguma, a sua importância no contexto geral da história da ciência contemporânea. Os eventos de Sobral serão sempre lembrados como um marco nesta história, e motivo de muito orgulho para todos nós cientistas Brasileiros. Evidentemente, na sua devida perspectiva.

INTRODUÇÃO

Uma das previsões mais famosas da Teoria da Relatividade Geral (TRG), de Albert Einstein, foi a da deflexão gravitacional da luz. A comprovação deste efeito poderia, em princípio, ser realizada por ocasião de um eclipse solar. As estrelas de fundo, em torno do círculo solar, poderiam ser usadas como fontes luminosas para o experimento observacional. A TRG prevê, para incidência rasante de luz na superfície do Sol, um desvio de 1,75 segundo de arco, na trajetória do raio de luz. Em outras palavras, a posição de uma estrela observada -- durante o eclipse --, próxima ao disco solar, deveria parecer deslocada deste ângulo, quando observada sem a influência gravitacional do Sol sobre a sua luz, ou seja, quando observada alguns meses mais tarde.
Existe também uma previsão puramente Newtoniana para o efeito, a qual é exatamente a metade da relativística (mais detalhes em Weinberg 1972: ver um resumo em Soares 2005a).
Existem duas questões pertinentes, a saber:

  1. Existe a deflexão gravitacional da luz?
  2. Em caso afirmativo, qual é a melhor descrição teórica do fenômeno, a Einsteiniana, a Newtoniana ou uma terceira alternativa?

Em 1919, o célebre físico teórico e astrônomo Arthur Eddington organizou duas expedições científicas para a observação do eclipse solar que ocorreu no dia 29 de maio daquele ano. Os astrônomos Andrew Crommelin e Charles Davidson chefiaram uma das expedições -- a de Sobral --, e o próprio Eddington e E. Cottingham comandaram a outra -- na ilha do Príncipe, localizada na costa ocidental da África. Os eventos associados a estas expedições estão descritos com alguns detalhes interessantes nos relatos breves de José Ademir Sales de Lima (Lima 1999) e de Renato Las Casas (Las Casas 1999), ambos escritos por ocasião dos 80 anos do eclipse de Sobral. O Leitor deve ser advertido que estes relatos contém o que poderíamos classificar de uma visão não crítica dos eventos. Nesta linha pode ser também colocado o tratamento dado pelo físico teórico e renomado biógrafo de Einstein, Abraham Pais (Pais 1995, capítulo 16, para as questões da deflexão; ver discussão do viés pró-Einsteiniano de A. Pais em Soares 2003).
Para uma discussão crítica dos fatos relacionados às expedições organizadas por Arthur Eddington, utilizarei duas referências bibliográficas, que discutem com mais profundidade os aspectos técnicos associados aos eventos. As duas referências são: o livro do jornalista científico Dennis Overbye, intitulado "Einstein in Love: A Scientific Romance", especificamente nos seus capítulos 14 e 25 (Overbye 2000), e o artigo do cosmólogo dissidente Paul Marmet e colaborador (Marmet & Couture 1999). O Canadense Paul Marmet é declaradamente contrário à visão padrão da cosmologia moderna. Relativamente à deflexão da luz, Marmet é radical e afirma textualmente que "... ninguém pode seriamente reivindicar que a luz seja realmente defletida pelo Sol" (Marmet & Couture 1999).
Na próxima seção, apresentarei os argumentos contrários ao resultado positivo para a TRG, das observações de Sobral. As duas fontes mencionadas acima serão utilizadas para o levantamento destes argumentos. Ambas apresentam farta documentação bibliográfica referente ao assunto. Enquanto o livro de Overbye pode ser considerado como uma fonte isenta, obviamente, o mesmo não pode ser dito do artigo de Marmet & Couture, já que o fato de Marmet ser cosmólogo não ortodoxo pode introduzir uma tendência contrária à aceitação dos resultados de Sobral como comprobatórios da TRG. Os argumentos que apresentam, no entanto, serão levados em consideração no seu caráter técnico-científico. O que não dispensa o alerta.

DIFICULDADES TÉCNICAS NAS OBSERVAÇÕES DE SOBRAL

As dúvidas existem desde 1919. Eddington foi cativado pela relatividade geral desde o primeiro instante (Overbye 2000, p. 353), e tornou-se o evangelista de Einstein na Grã-Bretanha. Ele próprio admitia que se dependesse de sua vontade, ele não se preocuparia em realizar expedições para a observação de eclipses, já que estava convencido da teoria Einsteiniana. Quer dizer, as questões 1 e 2 apresentadas acima já tinham as suas respostas, independentemente da consulta à Natureza. Eddington repete aqui o conhecido comportamento de Einstein (ver Soares 2005b).
A comprovação observacional da deflexão gravitacional da luz em Sobral, e a comprovação da previsão da TRG, não foram reais mas apenas mitos impostos à comunidade científica da época pela autoridade político-científico de Eddington. Esta é a tese que se depreende dos fatos relatados em Overbye e Marmet & Couture.
Quando os resultados da análise feita por Eddington foram apresentados, numa reunião conjunta das Sociedade Real e Sociedade Astronômica Real Britânicas, o então presidente da Sociedade Real, o físico -- descobridor do elétron e prêmio Nobel -- Joseph J. Thomson teria dito: "É difícil para a audiência avaliar inteiramente o significado dos resultados que nos foram apresentados, mas o Astrônomo Real [Frank Dyson] e o Prof. Eddington estudaram o material cuidadosamente, e eles consideram a evidência como decisiva em favor de valor maior [o previsto pela TRG] para o deslocamento [angular]" (Marmet & Couture 1999, apêndice II-C). Os textos entre colchetes foram acrescentados por este Autor.
A impressão de que as expedições de Eddington tenham sido realmente um fracasso, quanto aos seus fins, é ainda mais reforçada pelo fato de que observações de eclipses posteriores, em 1922, 1929, 1936, 1947 e 1952, não foram convincentes em obter um resultado positivo (North 1990; para o Leitor mais interessado neste aspecto, recomenda-se as referências, sobre eclipses solares, mencionadas por North nas notas 48 e 49).
O mito da comprovação observacional da deflexão da luz, predita pela TRG, foi também reforçado, quando da visita de Einstein ao Brasil, em 1925. Alfredo T. Tolmasquim (2003), em sua excelente descrição da viagem de Einstein à América do Sul, relata a reação do cientista ao tomar conhecimento das manifestações de cientistas Brasileiros frente aos acontecimentos de Sobral. Em agradecimento, Einstein redigiu uma pequena nota (p. 73) nos seguintes termos, com o comentário entre colchetes, acrescentado:
"A pergunta que minha mente formulou foi respondida pelo ensolarado [!] céu do Brasil."
É proverbial a falta de preocupação que Einstein tinha com relação aos resultados das observações tal a sua íntima convicção de que a sua formulação teórica do problema estava correta (Soares 2005b).
O aspecto "mítico" da questão chegou a tal ponto, que a diferença -- em princípio, de natureza científica -- entre as expedições de Sobral e da ilha do Príncipe, e que no arcabouço mistificador de Eddington são fundamentalmente distintas, é desprezada, nos anos seguintes, por muitos cientistas. Por exemplo, Stephen Hawking, em uma de suas obras de divulgação científica (Hawking 2001), e o astrônomo Robert Fosbury (DVD "Hubble -- 15 years of discovery", ver http://www.spacetelescope.org) mencionam que as observações do eclipse na ilha do Princípe (!) comprovaram as idéias de Einstein relativas à deflexão gravitacional da luz. Isto ilustra o comportamento geral em se atribuir completa irrelevância às observações em face da magnitude da idéia por trás do fenômeno. É óbvio -- e nunca deixará de ser -- que a última palavra sempre caberá à confirmação experimental ou observacional de qualquer teoria proposta, seja qual for o fenômeno em pauta.

EXCERTOS DE OVERBYE (2000)

Parte substancial do capítulo 25, e algo do capítulo 14, de Overbye (2000), são dedicadas à deflexão da luz. Alguns fatos que ali são descritos serão apresentados aqui. O Autor apresenta variada documentação bibliográfica sobre os mesmos. O Leitor interessado em mais detalhes deve se remeter diretamente ao texto de Overbye. De forma geral, o relato é isento e constitui jornalismo científico de grande envergadura.
A confirmação observacional do efeito da deflexão já vinha sendo perseguida muito antes das expedições de Eddington, especialmente pelo astrônomo Erwin F. Freundlich, então no Observatório de Berlim (p. 200). Apesar de sua insistência, não teve êxito. Igualmente sem sucesso, o astrônomo do Observatório Lick, nos Estados Unidos, W.W. Campbell, realizou várias tentativas (p. 354). Pode-se dizer, que nenhum dos cientistas que se dedicaram ao problema tinha o prestígio científico e o trânsito entre fortes personalidades científicas da época, como Eddington. Estes fatos têm sido muito usados, na literatura, como constituindo as principais razões do ``sucesso'' do astrônomo Britânico em sua empreitada.
Quando ocorreu a chance do eclipse de 1919, apenas Eddington conseguiu os recursos para a missão. Para reduzir possíveis problemas de natureza meteorológica, Eddington, com o forte apoio do Astrônomo Real, Frank Dyson -- seu amigo --, programou duas expedições, a de Sobral e a da ilha do Príncipe.
Eddington só admitia dois resultados para as suas expedições: ausência de deflexão ou a deflexão Einsteiniana. Mesmo existindo, na época, além da possibilidade Newtoniana, um número grande de teorias de gravitação, que apresentavam outras previsões (p. 356).
Um grande problema, logo evidenciado, para a comparação entre as observações no eclipse -- durante o dia -- e fora dele -- durante a noite --, seria a diferença na temperatura ambiente. Isto poderia alterar a estrutura dos instrumentos e, por conseguinte, alterar o foco dos telescópios. A temperatura também influencia sobre as condições da turbulência atmosférica. No total, haviam doze tipos diferentes de fatores que deviam ser considerados, e isto obrigava à observação de no mínimo seis pares de estrelas, durante e fora do eclipse (p. 356).
Haviam dois instrumentos em Sobral, uma câmera astrográfica, de Greenwich, e um telescópio Irlandês, com uma lente de 10 cm. Na ilha do Príncipe, havia outra câmera astrográfica.
O mau tempo predominou na ilha do Príncipe, mas Eddington insistiu em fotografar e obteve duas placas onde apareciam apenas cinco estrelas, e com imagens borradas. Mesmo assim Eddington, através de suposições e aproximações adicionais, conseguiu obter um resultado para a deflexão da luz, a saber, 1,61 segundo de arco.
Em Sobral, as condições meteorológicas foram melhores. O telescópio Irlandês forneceu os melhores dados: sete placas com sete estrelas. A análise de Eddington resultou em 1,98 ± 0,12 segundo de arco. A câmera astrográfica obteve mais estrelas, mas o efeito da temperatura sobre o instrumento foi drástico. O resultado foi de 0,86 segundo de arco -- a previsão Newtoniana --, entretanto com uma grande incerteza (p. 359).
Qual seria a resposta correta? Eddington tomou a decisão: desprezou o resultado do astrógrafo de Sobral e tomou, simplesmente, a média dos dois outros resultados. Exatamente 1,75 segundo de arco, a previsão relativística.

EXCERTOS DE MARMET & COUTURE (1999)

O artigo de Marmet & Couture (1999) intitula-se "Relativistic Deflection of Light Near the Sun Using Radio Signals and Visible Light". Os Autores examinam, no corpo principal do artigo, a questão da influência gravitacional sobre a luz e a sua detecção indireta por meio do atraso temporal na detecção de sinais de rádio, que se propagam de uma sonda espacial ou de fontes extragalácticas até a Terra.
Num apêndice extenso, as medidas diretas da deflexão da luz visível, por meio da observação de eclipses solares, são discutidas. Esta será a referência aqui examinada (apêndice II). Como salientado anteriormente, o Leitor, aqui também, é fortemente aconselhado a uma leitura integral de Marmet & Couture, ou pelo menos de seu apêndice II, para que possa ter elementos para um exame crítico mais aprofundado.
O objetivo explícito de Marmet & Couture, em seu trabalho, é mostrar que todos os experimentos, envolvendo sinais de rádio e de luz visível, com resultados positivos para a deflexão da luz estão sujeitos a enormes erros sistemáticos, que os tornam altamente suspeitos e, conseqüentemente, inconclusivos.
As dificuldades experimentais e de outras naturezas -- teórica e de análise de dados -- são as seguintes.
A turbulência atmosférica local, nos dois sítios, impediria a medida de detalhes menores que 2-3 segundos de arco. Naquela época já era evidente que apenas em excepcionais condições atmosféricas podia se conseguir uma resolução da ordem de 1 segundo de arco. Hoje sabe-se que, utilizando-se as técnicas refinadas de ópticas ativa e adaptativa, pode-se reduzir os efeitos da turbulência atmosférica ("seeing") para valores menores do que aproximadamente 0,5 segundo de arco, e mesmo assim contando com condições excepcionais de observação.
Este problema é acentuado durante as tardes, devido ao calor acumulado no solo. As observações de Sobral foram realizadas próximo ao meio-dia, e na ilha do Príncipe, por volta das 14 horas.
Supondo uma lente objetiva com perfeitas cromaticidade e forma óptica, o tamanho do pequeno disco brilhante no foco, formado por um minúsculo disco central circundado por um sistema de anéis de difração, não será nunca menor que 1,25 segundo de arco -- para a lente de 10 cm do telescópio Irlandês. Este disco central é chamada disco de Airy. Isto invalidaria a precisão declarada em alguns dos resultados de 0,01 segundo de arco.
Durante a permanência em Sobral, a temperatura variava de 24 °C, à noite, a 36 °C, à tarde. Os efeitos sobre o astrógrafo de Sobral foram particularmente desastrosos. O seu foco parece ter mudado, da noite de 27 de maio até a momento do eclipse, no início da tarde do dia 29. Quando a equipe retornou a Sobral, em julho, para obter as placas de comparação, descobriu-se que o instrumento havia retornado ao foco anterior.
O pequeno número de estrelas observadas também é apontado por Marmet & Couture como sendo um empecilho para uma correta interpretação dos dados.
Do ponto de vista teórico, relata-se que o físico Polonês Ludwik Silberstein apontara, numa reunião da Sociedade Astronômica Real Britânica, que os deslocamentos das estrelas não eram radiais, relativamente ao centro do Sol, como previsto pela TRG, mas algumas vezes desviados desta direção de até 35°.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alguns cientistas acreditam que resultados modernos de observações astronômicas, especialmente na faixa de comprimento de onda de rádio, confirmam a previsão relativística. Alguns outros ainda vêem problemas técnicos não resolvidos e preferem se acautelar, a tomar uma conclusão precipitada. Esta questão deverá aguardar até 2010-2011, quando o satélite GAIA, um mega-projeto de astrometria Norte-americano e Europeu, será lançado (veja mais detalhes em http://gaia.esa.int/). O satélite GAIA possui dois telescópios astrométricos que farão medidas de posição e movimento de um bilhão de estrelas. Como sub-produto deverão ser detectados dezenas de milhares de planetas extrasolares, dezenas de milhões de galáxias distantes e cerca de 500 mil quasares. Estes quasares deverão ser utilizados como fontes de luz para o estudo da deflexão por Júpiter e Saturno, com uma precisão experimental inquestionável da ordem de 0,01%. Astrônomos Brasileiros também participam da missão GAIA.
Concluindo,
qual é a real importância de Sobral na ciência moderna?
Sobral encontrou-se no local certo e no tempo certo para ser o palco perfeito para uma encenação científica, que teve profundas repercussões sociais, políticas, psicológicas e científicas no desenvolvimento da Humanidade. Sobral permanecerá como fonte riquíssima de inspiração, para todos aqueles que quiserem buscar uma melhor compreensão do ser humano em seus vários matizes.
Incidentalmente, o comportamento de Eddington, a saber, o abuso da autoridade e a atitude preconceituosa -- ambos inadmissíveis em quaisquer atividades -- foram utilizados na ciência no passado, e continuam sendo utilizados no presente. Existem traços claros destes comportamentos em alguns setores da cosmologia moderna, por exemplo.

EPÍLOGO

Em 1999, após ler o artigo do Prof. José Ademir (Lima 1999), sobre a deflexão da luz e Sobral, sugeri ao meu colega, Prof. Renato Las Casas, que preparasse um texto semelhante para a página eletrônica do Observatório da UFMG (http://www.observatorio.ufmg.br/). As atividades do Observatório Astronômico Frei Rosário são coordenadas pelo Prof. Renato, e se constituem atualmente de divulgação da Astronomia e da Física. O Prof. Renato -- com modesta colaboração de minha parte -- preparou um excelente texto, com muitas ilustrações e referências eletrônicas (Las Casas 1999). Por ironia, acabo de terminar um texto, que -- ao contrário dos textos acima -- reporta as dúvidas imensas que persistem a respeito das observações e conclusões resultantes das missões astronômicas em Sobral.

REFERÊNCIAS