A TEORIA COSMOLÓGICA DO ESTADO QUASE ESTACIONÁRIO

Domingos S.L. Soares *
(29 de Setembro de 2001 - Revisto em 20 de Novembro de 2001)

O astrofísico e cosmólogo Fred Hoyle - falecido recentemente, no dia 20 de agosto de 2001, aos 86 anos de idade - contribuiu de forma fundamental para a ciência contemporânea. De sua vasta contribuição científica destaca-se aqui alguns aspectos de sua visão cosmológica, a saber, as teorias do estado estacionário e do estado quase estacionário. Apresenta-se também um relato breve a respeito das observações recentes de supernovas em grandes desvios para o vermelho, as quais confirmam uma das previsões de Hoyle e colaboradores, qual seja, a de um universo atualmente em expansão acelerada.

Introdução

Pode-se afirmar que a cosmologia, como hoje é entendida, teve o seu início em 1917, quando o físico alemão Albert Einstein propôs o seu modelo do universo. Baseado na teoria da relatividade geral (TRG), de sua autoria, e na sua percepção do mundo físico, Einstein estabeleceu um modelo do universo que, em grande escala, era homogêneo, isotrópico e estático. A idéia de um universo em expansão, tão popular hoje em dia, não era de forma alguma óbvia.
As soluções das equações da TRG que admitiam a expansão do universo foram obtidas pela primeira vez pelo russo Alexander Friedmann, tornadas públicas em artigos científicos datados de 1922 e 1924. Estes trabalhos foram seguidos, de forma independente, pelas pesquisas do cosmólogo belga Georges Lemaître, publicadas em 1927 e 1931, que também resultaram em modelos de universo em expansão.
Tais modelos alcançaram projeção no mundo científico a partir da descoberta da relação proporcional entre o desvio para o vermelho e a distância das galáxias. Esta relação, investigada por vários astrônomos, foi estabelecida de forma segura e definitiva em 1929 pelo astrônomo norte-americano Edwin Hubble. Verificara-se observacionalmente, que a luz emitida pelas galáxias possuía comprimentos de onda cujos valores eram deslocados em direção ao vermelho, no espectro de luz visível, e a relação mostrava que este desvio era proporcional à distância das galáxias. Este tipo de relação entre comprimento de onda da radiação e distância era exatamente o que era predito pelas soluções de Friedmann e Lemaître.
A invenção portanto do conceito de um universo em expansão decorreu de dois aspectos, a saber, de resultados teóricos e de observações astronômicas. Isto significa que a expansão do universo não é um fato empírico, i.e., deduzido diretamente da observação da natureza, como o é, por exemplo - e para mencionar um caso estreitamente relacionado à cosmologia -, a existência individualizada das galáxias. O grande astrônomo Edwin Hubble teve aqui também atuação decisiva. Foi ele quem mostrou, de forma brilhante e definitiva, que as chamadas "nebulosas espirais" eram objetos astronômicos independentes de nosso sistema estelar, a galáxia da Via Láctea. A sua descoberta foi baseada inteiramente em relações empíricas, obtidas a partir das observações astronômicas. Quer dizer, as galáxias não foram "inventadas" mas, de fato, descobertas.
Ao se aceitar a expansão do universo, as conseqüências são dramáticas. Uma simples extrapolação temporal da expansão do universo, para épocas passadas, leva a um estado de altas densidade e temperatura, que em princípio não tem limites. E acima de tudo estabelece um início para a história do universo como um todo.
Muitos cientistas, contemporâneos destes desenvolvimentos científicos, não aceitaram estas idéias, reputando-as como simplórias e até mesmo repugnantes. Entre eles estão os astrônomos britânicos Arthur Eddington e Fred Hoyle, este último, personagem principal da história aqui contada. Fred Hoyle tentou inclusive ridicularizar o modelo de Friedmann-Lemaître apelidando-o de universo da "grande explosão" (em inglês, big bang). O nome no entanto passou a pertencer ao jargão científico, sem as características de ridicularização que o motivaram.
Várias tentativas foram feitas no sentido de se evitar a desconfortável - do ponto de vista científico - singularidade, predita no universo da grande explosão. Menciona-se aqui apenas duas delas, das quais a segunda será o objeto de uma descrição mais detalhada. A primeira, o modelo de Eddington-Lemaître, foi proposto com o fim específico de se evitar a singularidade - eufemismo para "fase desconhecida" - inicial. Neste modelo, a extrapolação temporal para o passado termina num estado inicial com características semelhantes ao universo estático de Einstein. Em todas as outras fases ele é indistinguível do modelo com singularidade.
A segunda tentativa, de caráter mais amplo e revolucionário, foi proposta por Fred Hoyle e colaboradores. Esta segunda tentativa se ramifica em duas, separadas por quase 50 anos. A primeira, denominada "cosmologia do estado estacionário" foi proposta por Hoyle e pelos cientistas, também britânicos, Hermann Bondi e Thomas Gold, em 1948. A segunda surgiu am 1993, após o fracasso da primeira, e foi idealizada por Hoyle, por Geoffrey Burbidge e pelo físico teórico indiano Jayant Narlikar, e denomina-se "cosmologia do estado quase estacionário". A semelhança dos nomes reflete alguns pontos que elas têm em comum, como se verá em algum detalhe a seguir.

Cosmologia do estado estacionário

Em 1948, Hoyle e, independentemente, Bondi e Gold, propõem o modelo do estado estacionário. O universo é homogêneo, isotrópico e infinito espacialmente, e além disso, ao contrário do universo da grande explosão, tem uma idade infinita. O modelo expande-se, como na grande explosão, mas matéria é contínua e uniformemente criada, de forma a garantir a homogeneidade e isotropia. A teoria não indica de que forma a matéria é criada. A violação da lei da conservação da matéria, lei esta implícita na TRG, foi contornada por Hoyle através de um artifício matemático.
Os leitores interessados numa discussão introdutória destes aspectos encontrará excelente material no capítulo 18 do livro Cosmology, the science of the universe, de autoria de Edward Harrison, e para uma introdução completa às teorias cosmológicas propostas por Hoyle e colaboradores ver A different approach to cosmology, de autoria de Fred Hoyle, Geoffrey Burbidge e Jayant Narlikar, ambos editados pela Cambridge University Press, 2000.
A idéia de criação contínua de matéria foi fortemente questionada durante as décadas de 50 e 60, anos que se seguiram à sua proposição. Verifica-se, no entanto, que após os desenvolvimentos das teorias inflacionárias, a partir de meados de 1980, esta idéia tornou-se, de certa forma, muito mais respeitável. A idéia foi mantida por Hoyle e colaboradores nos seus trabalhos posteriores em cosmologia.
Hoyle propôs uma pequena modificação na TRG para permitir a criação de matéria a partir de um "reservatório" de energia negativa. À medida que a matéria é criada, a conservação da energia resulta num reservatório de energia cada vez mais negativo. A expansão do universo, no entanto, mantém a densidade de energia do reservatório e a densidade média da matéria no universo constantes. Daí vem o termo "estacionário" no nome da teoria.
Na época em que foi proposta era uma teoria bastante atrativa pois atribuía uma idade infinita ao universo. Isto era uma grande vantagem em relação à teoria da grande explosão, a qual implicava numa idade do universo cerca de dez vezes menor que a idade geológica da Terra! Esta inconsistência básica foi o principal sustentáculo, durante muitos anos, do modelo do estado estacionário. A situação mudou entretanto na década de 60.
A descoberta da radiação cósmica de fundo, em 1965, pelos norte-americanos Arno Penzias e Robert Wilson, a revisão da estimativa da idade do universo, à luz de novos dados observacionais, a descoberta dos quasares, que de certa forma, implicava num quadro consistente de evolução de galáxias, e outros desenvolvimentos teóricos, experimentais e observacionais, levaram paulatinamente a um descrédito na teoria do estado estacionário, e o modelo da grande explosão ocupou de vez o cenário cosmológico.

Intermezzo

Os modelos da grande explosão, i.e., os modelos de Friedmann-Lemaître, tornaram-se definitivamente a base do chamado modelo cosmológico padrão, que passou a ser conhecido popularmente pelo termo em inglês Big Bang.
Mas o modelo padrão logo revelou-se um celeiro de problemas. O primeiro deles é a discordância entre os valores predito e observado da densidade de matéria no universo. O valor predito decorre do ajuste da teoria, na fase inicial da expansão, tendo por objetivo o cálculo das abundâncias químicas dos elementos de massa pequena, a chamada nucleossíntese primordial. Estes elementos atômicos, deutério, hélio e lítio, foram sintetizados na fase quente e densa da grande explosão e serviram de matéria prima para a formação dos demais elementos, no interior das estrelas. O valor observado da densidade de matéria é obtido a partir do censo, i.e., da contagem de objetos luminosos (estrelas, galáxias, etc) no universo. A discrepância entre os dois valores, o predito e o observado, é da ordem de um fator de 100!
O segundo problema reside na radiação cósmica de fundo. Esta radiação é, de acordo com a teoria, a manifestação atual da bola de fogo inicial da grande explosão. As observações mostram que ela é exageradamente uniforme em intensidade. As flutuações de densidades observadas hoje na distribuição de galáxias não se conciliam com a homogeneidade da radiação cósmica de fundo, a não ser que ajustes artificiais e hipóteses ad hoc sejam introduzidos na teoria.
O terceiro problema é a "singularidade" inicial. A expansão iniciou-se no desconhecido e no inexplicável ponto onde todas as leis da física, como a conhecemos, não se aplicam. As tentativas de abordagem desta singularidade, como por exemplo, as teorias inflacionárias, são difíceis de serem testadas observacional e experimentalmente.

Cosmologia do estado quase estacionário

Os problemas delineados acima e muitos outros levaram Fred Hoyle, Geoffrey Burbidge e Jayant Narlikar, em 1993, a propor um novo modelo cosmológico, semelhante à teoria do estado estacionário mas com correções de alguns de seus defeitos. A nova teoria foi denominada cosmologia do estado quase estacionário (CEQE).
Como na velha teoria, a CEQE prevê a criação contínua de matéria no universo, ao invés da criação de toda a matéria do universo num único evento, como na teoria da grande explosão.
Matematicamente, a influência dos inúmeros eventos de criação de matéria é o estabelecimento de uma oscilação cósmica em torno da solução estacionária das equações cosmológicas. Dai o nome "quase estacionária" para a teoria.
O universo presentemente está numa época de expansão que será seguida de uma contração, e assim sucessivamente. O período de oscilação é da ordem de 20-30 bilhões de anos.
A teoria matemática subjacente à CEQE é uma pequena modificação da TRG, constituída pela introdução de um campo escalar adicional. Detalhes técnicos estão nas referências bibliográficas apresentadas nas páginas eletrônicas listadas abaixo.
A CEQE oferece cenários alternativos aos do modelo padrão para a síntese primordial dos elementos leves - todos os elementos são formados no interior das estrelas -, para a homogeneidade e isotropia da radiação cósmica de fundo - resulta da termalização da energia liberada na criação dos elementos leves -, e para a formação da distribuição de galáxias no universo, i.e., da sua estrutura em grande escala - galáxias são criadas a partir de galáxias pré-existentes.
A cosmologia do estado quase estacionário mantém acesa a chama da busca científica por um modelo consistente para o universo como um todo. Fred Hoyle foi um representante destacado daqueles que trabalham nesta busca.

Epílogo

Resultados observacionais recentes têm se mostrado consistentes com a CEQE. É oportuno portanto terminar este relato sobre as teorias de estado estacionário com uma apresentação de alguns dos últimos e importantes acontecimentos em cosmologia observacional.
Trata-se das observações de supernovas do tipo Ia, em galáxias com desvios para o vermelho próximos de 1. A partir de observações, realizadas pelo Telescópio Espacial Hubble, de estrelas variáveis cefeidas em galáxias com supernovas, mostrou-se que supernovas do tipo Ia são excelentes indicadores secundários de distâncias. A propósito, supernovas do tipo I são objetos deficientes em hidrogênio. Existem supernovas do tipo Ia, Ib (e segundo alguns pesquisadores do tipo Ic). As diferenças entre os vários subtipos são resultantes, entre outros aspectos, de diferenças nas estrelas progenitoras dos eventos e nas características da radiação emitida pelas supernovas. As supernovas do tipo Ia são intrinsecamente mais brilhantes e resultem da explosão de anãs brancas, em sistemas binários. Supernovas do tipo II são ricas em hidrogênio e originem-se de estrelas de grande massa. São caracterizadas por colapso do caroço estelar, por rebote energético induzido por neutrinos e eventualmente pela presença de jatos.
O objetivo das observações de supernovas do tipo Ia é o de estabelecer uma extensão do diagrama de Hubble, da relação entre desvio para o vermelho e distância, para grandes desvios para o vermelho (no caso, para valores em torno de 1), tendo como meta final a determinação de parâmetros cosmológicos fundamentais. Especificamente, o parâmetro relevante na presente apresentação é o parâmetro de desaceleração, crucial em modelos de universo em expansão, tais como os de Friedmann-Lemaître e a CEQE.
Esta seção está baseada em três fontes: no livro A Different Approach to Cosmology, já mencionado anteriormente, nos artigos de revisão de Michael S. Turner, Dark Energy and the New Cosmology, e de Alexei V. Filippenko, Einstein's Biggest Blunder? High-Redshift Supernovae and the Accelerating Universe. Os leitores interessados em mais detalhes, sobre o assunto abordado aqui, encontrarão farto material nestes, e a partir destes, textos.
Dois grupos de pesquisa, o Supernova Cosmology Project, liderado por Saul Perlmutter, e o High-z Supernova Team, liderado por Brian P. Schmidt, usaram amostras de supernovas Ia diferentes e técnicas de análise também diferentes, e chegaram à mesma conclusão: o universo está atualmente em expansão acelerada! O resultado é surpreendente, do ponto de vista dos modelos derivados do paradigma de Friedmann-Lemaître, os quais prevêem universos desacelerados. Em outras palavras, o parâmetro de desaceleração, usualmente representado por qo, destes modelos é sempre positivo. Incidentemente, vem dai talvez a preferência pela definição de um parâmetro de desaceleração, e não de aceleração: trabalha-se naqueles modelos com números positivos. Os valores típicos são qo < 1/2, para universos abertos, qo=1/2, para o universo plano (Euclidiano), e qo > 1/2, para universos fechados.
Em termos de qo, o que os dois grupos afirmam é que as observações recentes apontam para valores negativos!
O modelo padrão pode ser reconciliado com a expansão acelerada desde que haja uma componente energética no universo responsável pela aceleração. Uma candidata, historicamente sempre à disposição dos interessados, é a velha constante cosmológica, introduzida por Einstein nas equações cosmológicas da TRG, em 1917, para manter o seu modelo de universo estático. Einstein queria, com este termo de pressão negativa, supostamente presente no universo, contrabalançar os efeitos atrativos da gravidade. Após o surgimento das evidências observacionais, especialmente a partir dos trabalhos de Edwin Hubble, em favor de modelos de universo com expansão, ele rapidamente abdicou da idéia.
Há um problema, no entanto, com a consideração de uma constante cosmológica, um problema sério de auto-consistência teórica.
Com o advento das teorias quânticas de campo, impõe-se restrições bem definidas para os valores presumíveis da constante cosmológica, que de forma quase que definitiva a excluem como solução para o problema da expansão acelerada. Este fato é conhecido atualmente como o problema da constante cosmológica. Para se ter uma idéia da gravidade do problema basta mencionar que o valor preconizado pelas teorias quânticas de campo, para a constante cosmológica, levam a um universo cuja idade seria da ordem de 10-10 do segundo e cujo horizonte de eventos estaria a 3 cm do observador!
Com o fim de se preservar o modelo padrão, recorre-se a uma alternativa energética que forneça a pressão negativa necessária à manutenção da expansão acelerada, e que não sofra das restrições impostas à constante cosmológica. Esta componente energética recebeu o nome de energia escura. O termo ``escura'' do nome é outro eufemismo astronômico, já tradicional, para "desconhecida". Desconhecida mas não desqualificada. Segundo Michael S. Turner, que cunhou a expressão, a energia escura tem as seguintes propriedades: não emite luz (i.e., radiação eletromagnética de modo geral), exerce uma grande pressão negativa (grande no sentido de ser comparável, em módulo, à sua densidade de energia), e é aproximadamente homogênea (quer dizer, desacoplada da matéria em escalas pelo menos tão grandes quanto de aglomerados de galáxias). Estas propriedades mostram que "energia" é o termo correto para qualificar esta nova componente escura. Ela é portanto qualitativamente bastante diferente da matéria escura.
De acordo com o modelo padrão, e a serem confirmados os resultados das supernovas, teríamos um universo constituído aproximadamente de 2/3 da suposta energia escura, 1/3 (da suposta) matéria escura (bariônica e não bariônica) e 1/200 de matéria luminosa! É importante ressaltar que nesta contabilidade está implícita a aceitação do paradigma inflacionário, o qual prevê que a soma das três componentes seja exatamente igual a 1.
Segundo Michael S. Turner, "o maior desafio da cosmologia moderna é entender o real significado desta energia escura". Deve-se acrescentar que tal entendimento é vital para a própria sobrevivência do modelo padrão.
E o que preconiza a Cosmologia do Estado Estacionário a respeito da expansão do universo? Desde o início, muito antes dos projetos de supernovas, desde a época da Cosmologia do Estado Estacionário, de Hoyle, Bondi e Gold, e apesar da quase unanimidade dos modelos desacelerados de Friedmann-Lemaître, nada mais, nada menos, que uma expansão acelerada!

Domingos S.L. Soares
Departamento de Física, ICEX, UFMG, C.P. 702
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