Prof. Alaor Chaves (03/março/2011)
Em 1543, ano da sua morte, Nicolau Copérnico publicou o livro “Da revolução das esferas celestes”, um dos trabalhos mais importantes e polêmicos da história da ciência, geralmente apontado como marco inicial da ciência contemporânea. Copérnico propõe o modelo heliocêntrico para o movimento dos planetas. A Terra deixava de ser o centro do universo, o que constituiu um forte abalo na vaidade e auto-estima do Homem. Coincidentemente, em 1973, em um simpósio comemorativo dos 500 anos do nascimento de Copérnico, Brandon Carter apontou que o universo em que vivemos é na verdade muito especial e admiravelmente favorável ao surgimento e desenvolvimento da vida. Carter cunhou na oportunidade o termo princípio antrópico, que muitos consideram infeliz e gerador de equívocos. Seleção antrópica seria o termo apropriado. Mas o termo original pegou e tem sido objeto de uma grande massa de estudos.
Em certo aspecto, o princípio antrópico formulado por Carter – há outra versão mais afirmativa, chamada princípio antrópico forte, formulada por John Barrow e Frank Tipler – é um truísmo, pois um universo habitado por observadores que tentam decifrá-lo obviamente tem de ser regido por leis que possibilitem o surgimento de tais observadores. Se o universo fosse inóspito à vida, obviamente não estaríamos aqui para comentar sobre essa azarada realidade. Mas isso não significa explicação para o fato de nosso universo ser capaz de hospedar observadores. Ocorre que não só as leis do nosso universo, mas também o valor de muitas das grandezas fundamentais para a definição da sua estrutura e das suas propriedades são surpreendentemente favoráveis à vida, e esse fato admirável pede uma explicação. Habitamos um universo que nos é muito hospitaleiro, o que resgata boa parte do que Copérnico nos havia subtraído. Algumas das suas grandezas fundamentais são “sintonizadas” de maneira tão perfeita para que a vida eventualmente surja e evolua que pensar em coincidência seria inteiramente contra a tradição científica. Para muitos teólogos e alguns cientistas religiosos, tal sintonia só pode ter sido obra de um Criador benevolente. Freeman Dyson, cristão e grande físico teórico, famosamente declarou: “... o universo parece ter sabido que estávamos a caminho.”
Mas a grande maioria dos físicos, astrônomos e cosmólogos que estudam o problema propõe outra explicação, baseada na idéia dos multi-universos, ou simplesmente multiversos. Há muito boas razões para se crer que nosso universo (doravante denominado Universo) seja apenas um dentre um número fantasticamente alto – talvez infinito – de outros universos existentes. Não se sabe se essa faustosa coleção de universos é regida pelas mesmas leis fundamentais. Pode ser que sim. Pelo menos desde René Descartes, muitos filósofos e físicos pensam que as leis deste ou de qualquer outro universo são resultado de princípios transcendentais de natureza matemática. Mas, a natureza e o comportamento do cosmo não depende só dessas leis fundamentais. Eles dependem também do valor de certas grandezas – chamadas constantes universais – tais como a velocidade da luz, a constante gravitacional que dita a intensidade da força de gravitação, e várias outras. Muitos acreditam que o valor de cada uma dessas grandezas, em cada universo, seja um mero acidente decorrente de detalhes da gênese do referido universo. Assim, os diversos universos apresentariam uma enorme variedade de estruturas e de propriedades. Nessa generosa diversidade de cenários, alguns universos, muito raros, teriam propriedades que os tornariam propícios ao surgimento e evolução da vida, e em um desses estamos nós, encantados com as suas características tão hospitaleiras. De fato, como se expressou Stuart Kauffman, sentimo-nos “em casa no Universo.”
Uma análise mais detida do valor das grandezas fundamentais do Universo e de porque elas favorecem o desenvolvi mento da vida obviamente excede em muito o espaço deste artigo. Mas uma apresentação parcial e simplificada talvez seja bastante para que se exponha o essencial e leve o leitor a concordar que de fato vivemos em um universo muito especial. Para o leitor interessado em mais detalhes, selecionamos como referência cinco dentre dezenas de livros que abordam o assunto.1-5 Ao tratar da adequação ou não de um universo ao desenvolvimento de vida, é preciso ter em mente que a vida pode se apresentar em formas inimaginavelmente diversas das que vemos na Terra. Mesmo em nosso planeta, temos formas de vida adaptadas a ambientes que seriam impensáveis, não fosse exatamente o fato de que neles existe vida. Mas algumas condições parecem ser absolutamente indispensáveis para que a vida apareça e prospere. Por exemplo, sem uma química complexa – o que pressupõe uma boa variedade de átomos – a vida parece ser um fenômeno impossível. A vida é um processo que ocorre em condições duradouramente fora do equilíbrio. Isso requer um universo estruturado, não uma coisa homogênea. Um espaço preenchido só por gases certamente não seria um local adequado. A gravitação é a única coisa conhecida capaz de estruturar um universo. Em nosso Universo, a gravitação cria estrelas, dentro das quais são sintetizados os átomos da Tabela Periódica. As estrelas também geram calor e irradiam luz, o que mantém por longo tempo regiões altamente fora do equilíbrio. Sem elas, a vida parece inviável. Planetas relativamente frios, aquecidos e iluminados por uma estrela duradoura, isso parece ser o mínimo que se exige de um universo que nos acolha com decência. Mas, como veremos, ser um universo que contenha estrelas capazes de brilhar longamente não é nada fácil.
O Universo foi criado há 13,7 bilhões de anos no Big Bang, um cataclismo similar a uma explosão. Tudo o que possa ser observado por nós está a distâncias menores do que 13,7 bilhões de anos-luz , pois a luz de objetos mais distantes gastaria um tempo maior do que a idade do Universo para chegar até nós. Essa distância de 13,7 bilhões de anos luz define o nosso horizonte de observação e delimita o universo observável, o Universo. Mas o espaço e matéria criados pelo Big Bang presumivelmente se estende a distâncias muitíssimo maiores do que a do horizonte. Esse vastíssima realidade inclui inúmeras regiões incapazes de atuar umas sobre as outras que, por isso, são universos autônomos. Essas regiões desconexas são chamadas universos bolsões (pocket universes). Portanto, o Big Bang que criou o Universo na verdade criou um multiverso. Além do mais, big bangs podem ser eventos corriqueiros, quando se considera toda a realidade física. Todos os outros universos podem ter tido, nos aspectos mais básicos, um início análogo. Mas detalhes de natureza acidental, talvez ligados a flutuações quânticas, podem se amplificar com a expansão do espaço para gerar universos com propriedades bem diversas. No Big Bang, no Universo só foi criado o hidrogênio, o hélio – que é um átomo quimicamente inerte – e uma pitadinha de lítio. Esse Universo primordial é quimicamente muito pouco interessante. Os outros átomos que conhecemos foram sintetizados no interior de estrelas por meio da fusão nuclear do hidrogênio e do hélio. Os átomos mais pesados de que somos feitos, tais como carbono, nitrogênio, oxigênio, sódio, cloro, enxofre, fósforo, metais diversos etc., foram sintetizados em estrelas de massa muito grande, que rapidamente se exauriram e explodiram como supernovas, espalhando no espaço todos os átomos da Tabela Periódica.
Há um aspecto do Universo, da maior relevância, que precisa ser ressaltado. Só as estrelas de massa bem grande são capazes de sintetizar elementos mais pesados do que o carbono. Veja o caso do Sol. Até agora, ele só é capaz de produzir hélio, e assim permanecerá por mais uns 5 bilhões de anos. Após essa longa etapa da sua vida,ele passará por uma fase denominada gigante vermelha. Sua coroa se expandirá até atingir talvez a órbita da Terra e finalmente se desligará do seu núcleo, que se contrairá para formar uma anã branca, que acabará se transformando inteiramente em carbono. Mas as histórias estelares dependem criticamente da massa inicial. Maior a massa, menor o tempo de duração de uma estrela. Estrelas com massas de uns dez sóis sintetizam todo tipo de átomo com massa que não ultrapasse a do ferro. Consomem-se vorazmente e, após uma vida breve, explodem. Na explosão, sintetizam o resto da Tabela Periódica e espalham esse material no espaço. Nosso Sol e seus planetas foram formados de gases ricos desses detritos. Literalmente, somos feitos de lixo atômico. Estrelas gigantes vivem só alguns milhões de anos, ou até menos. Com a massa de 20 sóis, a estrela vive só um milhão de anos. Já o Sol – uma estrela de massa típica – consome sua ração de hidrogênio com satisfação, mas também com prudência. Já está brilhando há quase cinco bilhões de anos e deve brilhar ainda por outro tempo igual. As menores estrelas existentes, cuja massa é 8% da massa solar (essa é a massa mínima para que a estrela acenda a sua fornalha nuclear), são tão comedidas na fusão de hidrogênio que poderão durar 1 trilhão de anos. Veja só: as estrelas que fabricam toda essa profusão de átomos duram pouco e explodem, espalhando seu produto no espaço; já as mais leves, que por serem mais frias produzem menos luz ionizante, o que as torna mais benéficas para a vida, duram longamente. Essa vida longa é muito importante para que a vida evolua. Na Terra, a vida surgiu há mais de 3,5 bilhões, talvez 3,85 bilhões de anos. Mas seres vivos com tecidos multicelulares só começaram a aparecer no chamado período ediacarano, há 630 milhões de anos.
O Universo apresenta cinco tipos de força, mas no momento só falaremos de quatro delas: a força gravitacional, a força eletromagnética, a força nuclear forte e a força nuclear fraca. Todas essas forças são inteiramente indispensáveis para que haja o tipo certo de estrelas. Faltasse qualquer uma delas, e nada de estrelas como as requeridas! Consideremos inicialmente as forças gravitacional e eletromagnética. Elas são obviamente essenciais para que um universo seja minimamente interessante. Sem gravitação, o Universo seria um gás frio e escuro formado pelos átomos gerados no Big Bang. Sem força eletromagnética, não haveria luz. Tampouco haveria química, pois o que liga os elétrons aos núcleos atômicos para formar átomos e também os átomos para formas moléculas, líquidos e sólidos é a força elétrica. A força nuclear forte é responsável pela agregação de prótons e nêutrons na composição dos núcleos de átomos mais pesados do que o do hidrogênio. A força nuclear fraca é responsável pelos processos radioativos, principalmente pela transmutação de prótons em nêutrons e vice-versa, o que é essencial para que átomos mais pesados sejam gerados a partir do hidrogênio.
Assim, contamos com o número mínimo de forças necessárias para um universo que valha a pena. Isso talvez seja válido para todos os universos. Mas no nosso, cada uma dessas forças tem a intensidade adequada para que ele se comporte de maneira conveniente. Consideremos inicialmente as forças gravitacional e eletromagnética. Suas intensidades são extremamente distintas: a atração elétrica entre o próton e o elétron que forma o átomo de hidrogênio é cerca de N = 10.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 vezes mais intensa do que a sua atração gravitacional. Esse é um número muito grande, com 40 zeros. Esses zeros parecem feitos sob encomenda. Se tivéssemos 39, ou 41 zeros, as coisas não dariam certo. Gravitação excessivamente intensa levaria a estrelas excessivamente massivas e densas, com vidas muito curtas. Já gravitação excessivamente fraca não geraria estrelas capazes de realizar a fusão nuclear, que é a base da alquimia das estrelas. Um exemplo ilustra o quanto o comportamento das estrelas é sensível à intensidade da força gravitacional: se ela fosse duas vezes mais intensa, o Sol duraria só 100 milhões de anos, tempo insuficiente para a evolução da vida multicelular. Poderíamos mudar o número de zeros de N alterando a intensidade da força eletromagnética. Mas isso seria igualmente desastroso. Primeiro porque as energias envolvidas nas ligações químicas se tornariam excessivamente grandes ou excessivamente pequenas, o que seria muito inconveniente para o surgimento da vida. Segundo porque, como veremos adiante, uma alteração de meros 4% na intensidade da força elétrica inviabilizaria a produção do carbono e elementos mais pesados no núcleo das estrelas. Essa sintonia do número N, um número fantasticamente grande, é uma das coisas boas do nosso mundo.
Quando quatro átomos de hidrogênio reagem no núcleo de uma estrela para formar um átomo de hélio, uma fração e = 0,007 da massa inicial dos quatro hidrogênios é transformada em energia conforme a relação E = mc2 de Einstein. Em outras palavras, a massa do núcleo hélio é 0,7% menor do que a massa de quatro átomos prótons. É com essa fração de massa que nosso Sol ganha a vida e obtém energia para nos iluminar. O número e vem da relação entre a intensidade da força nuclear forte, que mantém os dois prótons e dois nêutrons do núcleo de hélio ligados, e a força elétrica, que cria repulsão entre os prótons e tenta quebrar o núcleo de hélio. O que aconteceria se e tivesse um valor diferente? Será que ele poderia ser menor do que 0,006 ou maior do que 0,008? A resposta é seguro não. Se tivéssemos e menor do que 0,006, a fusão do hidrogênio seria impossível. De fato, a primeira etapa da reação da fusão de hidrogênio que leva ao hélio é a combinação de dois prótons (núcleos de hidrogênio) para formar o deutério, ou hidrogênio pesado – um tipo de hidrogênio cujo núcleo contém um próton e um nêutron. Se e fosse menor do que 0,006, o deutério se tornaria instável, o que impossibilitaria a fusão do hidrogênio e de resto toda a alquimia das estrelas. Se e fosse maior do que 0,008, haveria na natureza um tipo de hélio cujo núcleo seria composto de dois prótons. A fusão de prótons para formar esse hélio ultraleve ocorreria com tal facilidade que durante o Big Bang praticamente todos os prótons existentes se combinariam nesses pares. O Universo primordial seria então quase inteiramente composto desse tipo de hélio e praticamente não haveria hidrogênio. Sem hidrogênio, a vida seria inteiramente impensável.
Como previu teoricamente Fred Hoyle nos anos 1950, e a experiência confirmou, para que o carbono e os elementos mais pesados possam ser sintetizados nas estrelas, a sintonia do valor de e tem de ser ainda mais fina: seu valor tem de estar no intervalo entre 0,0066 e 0,0074. Simulações recentes em computador das reações nucleares em estrelas mostram que, para que os átomos mais pesados sejam produzidos, não basta que a razão entre a força nuclear forte e a força eletromagnética seja bem sintonizada. Cada uma dessas forças tem de ter valores ajustados com boa precisão: alteração de 0,5% na intensidade da força nuclear forte ou de 4% na intensidade da força elétrica bastaria para deixar o Universo quase desprovido de carbono e inteiramente desprovido de oxigênio e de elementos mais pesados do que ele. Portanto, a existência no Universo do carbono e de elementos mais pesados depende de ajustes muito finos tanto da força nuclear forte quando da força eletromagnética.
Como vimos, a primeira etapa da fusão do hidrogênio para gerar hélio envolve um processo em que dois prótons se fundem e um deles se converte em um nêutron. A transformação de um próton em um nêutron é promovida e controlada pela força nuclear fraca. Como a força é fraca, a probabilidade de sucesso na reação é pequena: na maioria das colisões de dois prótons a reação não ocorre. Por isso, a fusão de hidrogênio para formar deutério é um processo lento. Não fosse isso, em vez de queimar prudentemente o seu hidrogênio uma estrela como o Sol explodiria como se fosse uma enorme bomba de hidrogênio. Na verdade, o hidrogênio da bomba H é deutério, caso contrário ela não explodiria. Vemos então que uma estrela pode viver longamente exatamente porque a força nuclear fraca é realmente muito fraca, ou seja, tem pequena intensidade. A intensidade da força nuclear fraca é o parâmetro que controla a taxa de fusão de hidrogênio e com isso a duração das estrelas. Se tal intensidade fosse significativamente maior, as estrelas durariam muito pouco; se fosse significativamente menor, as estrelas, exceto talvez as gigantes, teriam pouquíssima luz. A intensidade adequada a força nuclear fraca teve também papel decisivo na composição química do Universo primordial, que se estabilizou poucos minutos após o Big Bang: 75% (em massa) de hidrogênio, 24% (em massa) de hélio e 1% do resto. Essa concentração relativamente alta de hélio é importante para que as estrelas muito massivas produzam grande quantidade de núcleos pesados antes de explodir como supernovas.
Vivemos em um espaço de D = 3 dimensões. Essa é uma realidade tão profundamente impressa em nossa intuição que às vezes nem atentamos ao fato de que ela poderia ser diferente. Mas segundo a visão dominante entre físicos e cosmólogos, o número D = 3 é apenas mais um dos acidentes do Big Bang. Na verdade, provavelmente o Universo tem outras dimensões (6 ou 7) além das que percebemos. Mas, do total de 9 ou 10 dimensões, somente 3 se expandiram no Big Bang. As outras permaneceram comprimidas, fechando-se em circuitos de dimensões incrivelmente pequenas, da ordem de 0,00000000000000000000000000000000001 metro (35 zeros). Se a dimensionalidade do espaço não fosse D = 3, as leis da gravitação e da eletricidade, segundo as quais a força entre duas massas ou entre duas cargas elétricas cai com o inverso do quadrado da distância, seria alterada. Com isso, não haveria órbitas planetárias estáveis nem átomos estáveis. Isso seria muito desastroso, pois a vida se tornaria claramente impossível.
O número Q
A imagem mostrada baixo, obtida pela sonda WMAP (Wilkinson Microave Anisotropy Probe) talvez seja a mais importante já obtida no campo da astronomia. Publicada em março de 2006, ela levou à concessão do prêmio Nobel, em outubro do mesmo ano, a George Smoot e John Mather, os proponentes iniciais das medições que a geraram. A imagem é um mapa da luz mais antiga que se pode ver no Universo, emitida quando ele tinha 380 mil anos e sua temperatura era de 3 mil graus. Com a expansão do Universo, o comprimento de onda da luz também esticou e hoje ela corresponde à da emissão térmica de um corpo à temperatura de 2,7 graus absolutos. Trata-se nesse caso de radiação na faixa de microondas. As diferentes cores na figura representam diferentes temperaturas causadas por variações espaciais na densidade do gás primordial. Nas regiões mais densas, de cores amarelo e verde, surgiriam os atuais aglomerados de galáxias.
As variações na densidade de massa não são nada grandes. São de apenas uma parte em 100.000. Esse número Q = 1/100.000 é um dos principais parâmetros na fabricação do Universo. O que aconteceria se ele fosse diferente? Suponhamos que ele fosse 1/10.000. Nesse caso, as galáxias seriam corpos muito mais densos. Seriam enormemente povoadas de corpos negros; algumas talvez se colapsassem para formar um único e enorme buraco negro. Nas outras, as estrelas seriam tão próximas umas das outras que colisões entre elas seriam muito frequentes, o que tornaria a vida extremamente improvável. Mas, e se tivéssemos Q = 1/1.000.000? Nesse caso, o gás primordial se expandiria sem que nenhuma galáxia se formasse, e o Universo seria um gás escuro e frio em monótona expansão, no qual nada aconteceria mais emocionante do que a cega colisão entre dois átomos. A conclusão é que Q = 100.000 representa o grau de variação de densidade de massa capaz de levar a um universo que possa hospedar vida. O número Q decorre de flutuações quânticas em fases muito iniciais do Big Bang. Seu valor pode ser diferente nos diversos universos bolsões que foram criados. Em alguns raros deles teríamos galáxias similares às do Universo.
Já mencionamos que o Universo tem uma quinta força, além das quatro já discutidas. Ela representa uma antigravidade, e foi inicialmente introduzida por Einstein em 1917. Einstein pensava que o Universo fosse estático na escala cósmica. Por isso, introduziu nas equações da relatividade geral o parâmetro L – que ele denominou constante cosmológica – para gerar uma antigravidade que compensasse a atração gravitacional entre as galáxias e assim evitasse o colapso do Universo. Em 1929, Edwin Hubble descobriu que o Universo não é estático, e sim um sistema em expansão, o que tornou dispensável a constante cosmológica. Einstein lamentou tê-la inventado e no final da sua vida confidenciou que esse teria sido seu maior fiasco científico. Mas depois que o gênio saiu da garrafa ficou difícil prendê-lo de volta. Isso por causa da física quântica. Acontece que o vácuo, região do espaço que não contém luz nem matéria, segundo a mecânica quântica está muito longe de ser um completo vazio. Ele pulula de pares partícula-antipartícula e também de fótons que se criam espontaneamente e se aniquilam muito rapidamente. Tais partículas, antipartículas e fótons são chamados partículas virtuais. Há algo curioso referente a esse gás de partículas virtuais. Quando o espaço que confina um gás convencional se expande, a energia do gás diminui. Já no caso do gás de partículas virtuais, quando o espaço se expande o número de partículas aumenta, pois sua densidade é sempre constante. Quanto mais espaço, mais partículas virtuais e portanto mais energia. Disso resulta que enquanto um gás de matéria convencional tem pressão positiva, um gás de partículas virtuais tem pressão negativa. Segundo a relatividade geral, um gás de pressão negativa suficientemente intensa cria antigravidade. Usando a física quântica, é fácil calcular a densidade de massa decorrente de fótons virtuais. O cálculo pode ser realizado nas costas de um envelope, mas o resultado é estarrecedor: esses fótons geram densidade de energia com massa equivalente a 1093 gramas/cm3; 1093 é um número com 93 zeros, o que resultaria em um enorme valor para a constante cosmológica. Como as evidências eram consistentes com um valor nulo para L, a conclusão geralmente aceita era de que algum mecanismo desconhecido anularia exatamente o valor de L, quando se considerasse todos os tipos de partículas virtuais. A grande surpresa foi a descoberta anunciada em 1998 de que a antigravidade existe. A velocidade de expansão do Universo vem aumentando nos últimos 7 bilhões de anos, quando seu volume se tornou suficientemente grande. A fonte de tal antigravidade recebeu o nome de energia escura. Mas o nome é pouco relevante, o que importa é que matematicamente ela pode ser modelada pela constante cosmológica L de Einstein. O que é realmente intrigante é a disparidade entre o valor medido de L e o valor obtido das observações astronômicas: este é 10120 (120 zeros) menor do que o valor calculado com base na mecânica quântica. Mas afinal, por que uma grandeza cujo valor calculado é enorme pode ser nula sem causar estranheza, mas não pode ter um valor pequeno e não-nulo? A resposta é que alguma simetria desconhecida pode muito bem anular precisamente o valor teórico de uma grandeza. Mas anular 119 zeros e falhar em anular o 120º é coisa bem diferente. Isso requer uma sintonia mais fina do que qualquer coisa jamais vista. O pequeno valor de L é um aos maiores mistérios do Universo. Mas é muito bom que as coisas sejam como são. Se L não fosse tão pequeno, o Universo teria se expandido tão rapidamente desde a sua origem que nenhuma galáxia teria a menor chance de se formar, e a vida seria impossível.
Os dois componentes do núcleo atômico, nêutron e próton, têm massas muito próximas. A massa do nêutron é ligeiramente maior, e a razão entre a sua massa e a do próton é r = 1,0014. Essa pequena diferença entre o número r e o número 1 é fundamental para que o nêutron possa decair espontaneamente, gerando um próton, um elétron e um antineutrino. A massa do elétron é 0,00054 vezes a massa do próton e a massa do neutrino (que é igual à do antineutrino) é praticamente nula. Se o número r fosse menor do que 1,0008, a massa do nêutron seria menor do que a soma das massas do próton e do elétron e por isso o decaimento espontâneo (sem alguma fonte de energia) do nêutron seria impossível. Isso já teria sérias consequências. Mas a verdadeira tragédia aconteceria se a massa do nêutron fosse menor do que a do próton. Se tivéssemos r = 0,99946, ou menor, o próton isolado não seria uma partícula estável. Decairia espontaneamente gerando um nêutron, um pósitron (nome dado ao anti-elétron) e um neutrino. Isso significa que o Universo não teria hidrogênio. Ou seja, uma redução de apenas 0,028% na razão entre as massas do nêutron e do próton tornaria qualquer tipo de vida no Universo inteiramente inviável. Mais uma vez, escapamos por muito pouco!
Como vimos, além das leis fundamentais (como as da mecânica quântica, da relatividade, eletromagnetismo etc.), o Universo é controlado por um bom número de grandezas, algumas das quais têm valores essenciais para o desenvolvimento da vida. Na física e cosmologia contemporâneas, há cerca de 30 grandezas cujos valores são inexplicáveis. Permanecerão para sempre inexplicáveis? Alguns (na verdade muitos) físicos crêem que não. Segundo eles, mais cedo ou mais tarde chegaremos a uma teoria final que esclareça de vez não só o porquê das leis fundamentais que observamos, mas também permitirá determinar, por cálculos matemáticos, os valores de todas as constantes naturais, incluindo os valores das massas das diferentes partículas. Essa hipotética teoria final é comumente chamada Teoria de Tudo (Theory of Everything, ou simplesmente TOE). Alguns grandes físicos, que incluem o já citado Freeman Dyson e Stephen Hawking, argumentam que uma TOE é impossível por razões puramente matemáticas. Seus argumentos se apóiam no chamado Teorema da Incompletude, demonstrado por Kurt Gödel em 1931. Tal teorema afirma que nenhuma estrutura matemática pode ser ao mesmo tempo consistente e completa. Ou ela é inconsistente, ou seja, contém afirmações que matematicamente são ao mesmo tempo falsas e verdadeiras, ou é incompleta, ou seja, contém afirmações verdadeiras que não podem ser demonstradas. Segundo Dyson, Hawking e outros, isso elimina de vez também a possibilidade de uma TOE, pois esta teria de ser uma teoria matemática e por isso padeceria da incompletude descoberta por Gödel: haveria na natureza coisas verdadeiras que não poderiam ser deduzidas da pretensa TOE.
Mas nosso maior interesse é focalizar uma consequência de uma eventual TOE. Uma teoria desse tipo não deixaria liberdade de variação para nenhuma das grandezas que determinam a estrutura e as propriedades de qualquer universo possível. Nesse caso, o multiverso não conteria uma diversidade de realidades: o Universo seria igual a todos os outros, exceto em aspectos que pudessem ser acidentais. Portanto, por razões puramente matemáticas todos os universos possíveis seriam favoráveis à vida e a seleção antrópica não desempenharia nenhum papel. Como apontado por muitos, isso seria especialmente assombroso e misterioso, pois a vida seria uma consequência natural da própria matemática.