CARTAS CELESTES E A REPRESENTAÇÃO DO CÉU NOVO

Lucas Henrique (Monitor OAFR) 14/06/10

De semelhante modo ao que se estabeleceu na Terra, a necessidade de localização dos corpos que integram o espaço se estendeu até o céu. Mais que mera representação, a descrição dos objetos celestes em função de suas respectivas posições, dado um referencial, fornece subsídios à determinação de parâmetros, inclusive quantitativos, de essencial valor à interpretação do que observamos.

Desde aplicações diretas em Astronomia até a elaboração de oportunos procedimentos de orientação, o conhecimento da disposição celeste mostra-se uma ferramenta importante e fundamentalmente versátil. Não obstante, a definição de um sistema de referência, bem como das coordenadas pressupostas, torna-se fator impreterível ao estudo de tal disposição.

O objetivo deste texto, portanto, é apresentar ao leitor um breve panorama acerca das mais usuais representações do céu, as cartas celestes, além de levá-lo à discussão de conceitos concernentes aos sistemas referenciais mais comumente postos a esse fim. Há que se ressaltar ainda a apresentação do programa Stellarium, uma espécie de mapa do céu eletrônico, largamente empregado ao ensino e divulgação da Astronomia e, sem dúvida, significativamente ilustrativo de muitos dos aspectos aqui tratados.

A esfera celeste

Ao contemplar o céu noturno, é bem provável que tenhamos chegado a uma idéia geométrica bastante natural: há algo como um manto esférico que envolve a Terra, no qual estão fixas as estrelas[1]. De fato, se nossa observação for suficientemente prolongada, verificaremos que a idéia é sobretudo razoável, já que esta “esfera” parece se mover durante a noite e arrastar consigo todas as estrelas em torno do planeta. Isto nos leva, então, à dedução de um importante termo: a esfera celeste.

O conceito de esfera celeste é extremamente útil à interpretação das posições dos objetos visualizados no céu. É como se o globo terrestre estivesse contido em um globo que o circunda, em cuja superfície estão postas as estrelas; além disso, tal globo parece girar ao longo dia, deslizando sobre o globo terrestre de leste para oeste. Verifica-se, ainda, que o giro dessa esfera ocorre como se sobre um eixo demarcado por dois pontos estáticos no céu. A estes denominaremos pólo sul celeste e pólo norte celeste, respectivamente ao hemisfério em que ocorrem.

Naturalmente, sabemos que a rotação verificada é apenas devida à rotação da Terra em torno de seu eixo e que, ao fixar as estrelas à superfície de uma esfera, estamos desprezando a noção de profundidade em nossa perspectiva e dispondo as estrelas de forma eqüidistante ao centro do planeta, o que também sabemos não ser real. Entretanto, a fins de observação, essas inferências não se mostram importantes, já que vale, em última instância, a impressão do observador na descrição do posicionamento dos objetos celestes.

De forma análoga à demarcação do globo terrestre para localização geográfica, a esfera celeste é também descrita por linhas imaginárias. Como os pólos sul e norte celestes são projeções dos pólos geográficos no céu, a linha que divide o globo celeste em dois hemisférios é também uma projeção da Linha do Equador, sendo conhecida por equador celeste; segue-se, então, que teremos linhas paralelas ao equador, latitudes, e perpendiculares a ele, longitudes. Além destas, outra linha imaginária de extrema importância em nossa análise denomina-se eclíptica. Tal linha representa a projeção do plano do Sistema Solar no céu, ou, de outra forma, a trajetória diurna do Sol (e, conseqüentemente, da Lua e dos demais planetas[2]) na esfera celeste, e não é paralela ao equador – inclusive, a interseção entre eclíptica e equador é dita ponto vernal, outro importante marco na esfera celeste.

Como percebemos, há já um preliminar indício da importância de sistemas que descrevam de forma consistente a posição dos objetos em relação ao céu observado. Passemos, assim, à descrição dos mais importantes destes sistemas, um definitivo passo à elaboração de representações celestes.

Sistemas de posição: um breve estudo de coordenadas celestes

Ressaltaremos, a seguir, os principais aspectos concernentes aos sistemas de posicionamento celeste mais comumente empregados: coordenadas altazimutais, coordenadas equatoriais e coordenadas horárias.

Cartas celestes

Enquanto representações gráficas do céu, as cartas celestes são dispositivos de grande apoio à identificação de objetos. Desde a simples visualização de constelações até a utilização da esfera celeste como mecanismo de navegação, a gama de aplicações dos ditos “mapas do céu” é bastante abrangente.

As cartas celestes são escritas em termos do sistema de coordenadas equatoriais, uma vez postas as considerações quanto ao caráter mais universal de tal sistema. Nelas, a perspectiva é a mesma de um observador sob a esfera celeste, ao que as direções cardeais correspondem a: norte, topo da carta; sul, extremidade inferior da carta; leste, esquerda; oeste, direita. Ademais, as cartas celestes têm em si representadas apenas estrelas, embora, a alguns propósitos, sejam eventualmente descritas as posições de galáxias ou nebulosas.

O uso de uma carta celeste é extremamente simples e pressupõe apenas que o observador esteja familiarizado ao céu que observa. Um modo bastante intuitivo a que o usuário acompanhe a descrição da carta consiste em realizar sua leitura imaginando-a postada acima de sua cabeça, como paralela ao zênite. Assim, se o observador volta-se para o sul, as direções dadas pela carta celeste tornam-se plenamente coerentes àquelas identificadas aos pontos cardeais no local de observação.

mapa do céu com o polo sul no centro

Mapa do céu para região próxima ao pólo sul celeste (representado no centro da imagem).

A fim de iniciar a identificação dos objetos a partir de sua representação na carta celeste, é necessário que o observador situe o céu que observa em relação à carta. Ora, sabemos que, uma vez que o observador localize seu zênite em relação às estrelas representadas, há condições de se determinar qual a porção do céu visível (i.e., acima do horizonte) à data e hora da observação. Para tanto, há que se localizar o zênite em coordenadas equatoriais.

Quanto à declinação, sua determinação é extremamente direta: a declinação do zênite é correspondente à latitude do local de observação. Já a ascensão reta do zênite, conforme a equação (1), é dada pelo negativo do tempo sideral local, de modo que α = -S (note que H = 0, pois é o ângulo entre o zênite e o meridiano local). Destarte, sendo conhecido o tempo sideral, temos a determinação completa do zênite em coordenadas equatoriais, obtendo, portanto, meios de relacionar o céu visualizado àquele representado na carta celeste.

É importante frisar que há cartas celestes que se valem do conceito de ascensão reta versa (ARV), correspondente ao ângulo entre o ponto vernal e o meridiano do objeto celeste medido para oeste. Nestes casos, relaciona-se tal grandeza à ascensão reta (α) fazendo-se ARV = 360° - α, em que o valor de α é tomado absoluto.

O Stellarium: um mapa eletrônico do céu

À enorme coleção de cartas celestes já projetadas, somem-se os modernos recursos computacionais hoje disponíveis e um banco de dados altamente funcional. O resultado pode até não ser imediatamente imaginado, mas ele existe e chama-se Stellarium, um mapa do céu eletrônico e surpreendentemente interativo.

Mais que um simples simulador de observações, o Stellarium oferece ao usuário uma experiência única de interlocução com a esfera celeste, a partir de uma vasta lista de possíveis ações e comandos. Através dele, por exemplo, tornam-se possíveis simulações de fenômenos físicos observáveis em ocorrência no céu, ainda que sejam de difícil visualização, inclusive com a peculiaridade de “viajar no tempo e no espaço” em razão de seu controle geográfico e temporal.

Além de um interessante aplicativo e transposição eletrônica de uma carta celeste convencional, o Stellarium pode ainda ser usado como uma poderosa ferramenta educacional no que concerne à iniciação à Astronomia. Os vários conceitos discutidos em teoria podem ser por ele melhor entendidos, uma vez simulados em condições reais de verificação. Devido à sua alta qualidade gráfica, o programa pode também ser usado em planetários e à elaboração de mapas do céu impressos ou para publicação.

Como se percebe, o Stellarium é um programa de imediata aplicação ao escopo de nossa discussão e seu uso é altamente recomendado aos amantes da Astronomia, seja a fins profissionais ou a uso livre. A compreensão dos aspectos relativos ao que viemos discutindo sobre dispositivos de representação do céu, aliás, deverá ser bastante favorecida se acompanhada da manipulação de tal ferramenta.

[1] É importante ressaltar que o termo “estrelas” denota aqui os objetos celestes que, em médio prazo, podem ser tomados como fixos uns em relação aos outros. Note que o Sol, a Lua e os demais planetas não são caracterizados esta definição, dada sua relação mais dinâmica com a Terra.

[2] Vale enfatizar que esta é uma trajetória aproximada quanto aos objetos do Sistema Solar que não o Sol, já que a distribuição dos corpos não é estritamente coplanar.

[3] Novamente, chamamos atenção ao fato de que esta observação é apenas aplicável às estrelas, ditas fixas. Em virtude da dinâmica do Sistema Solar, Sol, Lua e demais planetas apresentam grande variação em suas coordenadas equatoriais, pois se deslocam relativamente ao plano de fundo celeste em movimento anual.

[4] Na ausência de modificações, o Stellarium é sempre inicializado com data e hora compatíveis com a definição do sistema no qual está instalado.