Henrique Di Lorenzo Pires (Monitor UFMG/Frei Rosário)
Todas as constelações do céu possuem uma história própria, uma beleza característica, e muitas vezes uma coleção de inumeráveis objetos que só revelam seu encanto quando observados com o auxílio de algum equipamento ótico. Nenhum entusiasta pelos astros pode perder a oportunidade de ter tal experiência - em uma noite límpida observar por um telescópio uma região do céu em que aparentemente não existe nada, talvez uma manchinha pálida, quase irreal, e notar que ela se revela em dezenas ou centenas de estrelas que podem ou não estar imersas numa aura cintilante. Mas existem aqueles objetos que recusam se expor até aos mais poderosos telescópios óticos, entretanto sabemos de sua existência e de muitas das suas propriedades. No meio da constelação de Sagitário encontramos algo oculto às vistas, mas que se mostra surpreendente quando “observado” de outras maneiras. É o centro de nossa Via Láctea, sobre o qual comentaremos adiante. Antes devo apresentar o Sagitário!
A figura acima reproduz a imagem do Sagitário como visualizada por Hevelius na obra Uranografia (1690). O nome latino, Sagittarius, significa etimologicamente “arqueiro”, e no céu é tido como um centauro armado de arco e flecha, com a ponta voltada para o Escorpião. Os centauros eram representados na arte e mitologia grega como seres com tronco de homem e garupa de cavalo, geralmente selvagens e grosseiros. Mas nem todos os centauros compartilhavam dessa bestialidade. Quíron, descendente de Cronos, educado por Diana e Apolo tornou-se moralmente superior, hábil na caça, na música e na medicina. O ato virtuoso de Quíron ao trocar sua imortalidade para libertar o herói Prometeu rendeu-lhe um lugar no firmamento, representado entre as estrelas como a constelação de Sagitário.
figura a seguir é um esquema que nos indica a posição relativa das estrelas da constelação de Sagitário. Note que próximo à flecha de Sagitário está o ferrão de Escorpião, e acima do seu corpo está Corona Australis (uma “coroa” de estrelas, representada como um semicírculo). Isso facilita um pouco a identificação a partir de Escorpião (ver dica de observação do mês passado). Ao final do mês de julho e início de agosto Sagitário estará no zênite (bem acima das nossas cabeças) por volta das 23:00 h. No mapa também estão identificados os nomes próprios de algumas estrelas, que estão relacionados a vocábulos árabes:
Rukbat - O joelho do arqueiro
Arkab - O tendão
Al Nash - A ponta
Kaus Australis - Sul do arco
Ascela- Axila
Nunki - O peito
A região do céu correspondente à constelação de Sagitário é muito rica em nebulosas e aglomerados, mas é necessário algum equipamento ótico para identificar a maioria desses objetos. Um binóculo em muitos casos é suficiente, entretanto para alcançar uma definição mais satisfatória na imagem um telescópio de pequeno ou médio porte é recomendável.
Em Sagitário, três nebulosas difusas merecem destaque: Nebulosa do Lago (M8), Nebulosa Ferradura (M17) e a Nebulosa Trífida (M20). Nebulosas difusas, às vezes também chamadas de nebulosas gasosas, são nuvens de matéria interestelar, principalmente gás e poeira. Se forem grandes e massivas o suficiente elas podem se tornar sítios de formação de estrelas e conseqüentemente originarem aglomerados estelares. Se essas estrelas forem muito quentes elas poderão excitar os gases da nebulosa a emitir luz própria (nebulosas de emissão), caso contrário somente se observará a luz dessas estrelas refletidas na poeira (nebulosas de reflexão). A identificação dessas nebulosas bem como de alguns aglomerados (próxima seção) pode ser feita utilizando o mapa abaixo.
Acima esquerda: M8 (Nebulosa do Lago); Acima direita: M17 (Nebulosa da Ferradura); Abaixo direita: M20 (Nebulosa Trífida)
Em M8 observamos também um aglomerado de estrelas jovens que se formaram com o material da nebulosa (historicamente esse aglomerado foi descoberto antes). Outro ponto que merece destaque é a presença de nebulosas escuras. Nebulosas escuras são nuvens de matéria interestelar não iluminadas que absorvem a luz das estrelas que estão por trás aparecendo, assim, como uma faixa escura. Essas nebulosas escuras são responsáveis pela aparência trífida de M20. A nebulosa de emissão vermelha M20 com suas estrelas jovens no centro está circundada por uma nebulosa de reflexão azul, melhor notada na parte esquerda da foto.
Dentre os inumeráveis aglomerados que encontramos em Sagitário podemos destacar 3 aglomerados interessantes para se observar com binóculos ou telescópios: M22, M23 e M25.
Acima: M22; Direita: M25; Abaixo: M23
Na introdução do texto comentamos que o “núcleo” da nossa Via Láctea está localizado na constelação de Sagitário. Sabemos que as regiões centrais das galáxias são extremamente densas e brilhantes, como é possível então que o centro de nossa própria galáxia nos pareça invisível? Além do mais como sabemos que ele está lá se não podemos “enxergá-lo”? Acontece que poeira interestelar absorve a maior parte da luz visível que deveria estar chegando até nós - o centro da nossa galáxia está, assim, literalmente oculto por trás dessa cortina de poeira. Caso fosse diferente encontraríamos em Sagitário o “astro” mais brilhante da noite, após a Lua. Sabemos também (ver dica “Observando as cores das estrelas”) que, para nossa sorte, os astros não emitem somente luz visível. Pelo contrário, eles varrem o espectro magnético de ponta a ponta! Emitem desde microondas e ondas de rádio até raios X e raios gama. Como ondas eletromagnéticas podem ser absorvidas de maneiras bem distintas dependendo da freqüência podemos tentar enxergar essa região do céu por meio de outras faixas espectrais. O que acontece quando tentamos, por exemplo, os raios X ou ondas de rádio?
A cima estamos observando o centro da nossa Via Láctea na faixa do rádio e embaixo na faixa dos raios X.
Impressionante! Existe sim algo lá! A foto em raios X nos mostra a emissão de uma extensa nuvem de gás que foi aquecida a uma temperatura de milhões de graus por ondas de choque produzidas possivelmente em explosões de supernovas. As ondas de rádio nos mostram gás e poeira aquecidos (em vermelho) espiralando ao redor de um núcleo, provavelmente o alimentando. Astrônomos acreditam que esse núcleo é um buraco negro e o denominaram “Sagittarius A*”.